domingo, 5 de outubro de 2014

ESTIMULAÇÃO PRECOCE NA CRIANÇA CEGA



Introdução
A visão é o sentido que transmite maior quantidade de informações recebidas, especialmente durante os primeiros anos de aprendizado em situações novas. O cego, por conseqdência, precisa desenvolver o uso de todos os sentidos restantes e organizar sua percepção central, de modo que possa receber e ordenar essas múltiplas informações de maneira utilizável. Precisa ser ensinado a fazer isto pouco a pouco, desde o nascimento.
Mas muitas vezes uma criança, que nasce cega, é discriminada pelos próprios pais e não recebe desde o início a educação adequada. Inconscientemente, a mãe rejeita o filho por causa da deficiência. É claro que ela luta contra isso, mas para ela é uma decepção ter um filho cego. "E como se eu estivesse esperando uma boneca por muito tempo e ela viesse quebrada" (A.M.P., 25 anos). De repente, a deficiência visual de seu filho vem colocar em contradição todos os seus planos e aí caem por tena todos os seus anseios, todas as suas expectativas quanto a um filho normal.
Podemos observar esta posição refletida na fala da mãe de uma criança cega: "No início foi difícil aceitar uma filha assim, depois peguei amor por ela. Agora eu gosto muito dela" (A.R.S., 30 anos).
Muitas vezes é difícil aceitar uma deficiência no filho, devido à imposição e cobrança da sociedade. O que é válido socialmente é ter um filho forte, saudável, normal, sem deficiência de espécie alguma. "Eu não falo para os outros que meu filho é cego. Eu digo que ele apenas enxerga pouco" (S.R.M., 25 anos). Quando a mãe se depara com um quadro deste, à sua frente, se sente pressionada por valores sociais e, sem perceber a gravidade de sua atitude, rejeita o filho. "Sou muito nervosa e perco a paciência com ele, fico nervosa com isto, mas não consigo evitar" (C.M.S.L., 26 anos).
Mesmo quando a mãe passa por um trabalho em que ela é obrigada a rever, repensar o seu vivido em relação ao filho, fica ainda difícil a aceitação. "Tento ser uma boa mãe. Tenho paciência, mas às vezes me revolto" (M.S.S., 30 anos).
Muitas mães ao perceberem o quanto foram erradas, rejeitando o filho por causa de sua deficiência, tentam recuperar este tempo perdido superprotegendo-o: "Não gosto de deixá-lo muito à vontade, mas não sou de bater nem castigar. Quase tudo que ele pede eu dou, até saio a noite para comprar alguma coisa que ele quer" (T.C.A., 32 anos). E geralmente a superproteção é refletida na fala das crianças: "Deixa a Naninha fazer, deixa..." (M.R., 3 anos). "Minha mãe vive correndo, ela faz tudo para mim" (L.P.M., 7 anos).
Toda esta relação conflitiva ao nível da consciência (o querer/o não querer) se estrutura na cabeça da mãe, refletindo no comportamento da mesma que começa a desenvolver uma prática de superproteção em relação ao filho. E faz isto porque não consegue aceitá-lo como algo que ela mesma produziu.
Isto vai gerar na criança um sentimento de dependência, diferenciação, discriminação (a criança se sente diferente das demais). A partir daí, a própria criança se sente rejeitada e discriminada pelos demais membros da sociedade, e acaba por introjetar um baixo conceito de si mesma que será sempre refletido em todos os níveis de sua vida, nas suas relações, nos seus desenhos, na maneira de pensar a realidade, no próprio viver. "Eu sou toda estragada" (A.M., 8 anos).
Várias são as dificuldades encontradas pelo deficiente visual desde a infância, período em que ocorre o chamado processo de diferenciação. Este consiste na formulação do autoconceito. No começo, a criança é totalmente orientada e sente, é claro, dificuldade de se separar do seu ambiente. Percebe seus pais, mas para ela, eles apenas preenchem a função de satisfação das suas necessidades básicas. À medida que a criança se desenvolve, começa então a se perceber como algo a parte do seu ambiente. Todo este processo é facilitado com o desenvolvimento da visão, proporcionado por diversas situações em que a criança possa ver os outros seres e objetos. Não é difícil de concluir que este processo se torna bastante difícil para uma criança cega.
E é por este e outros motivos que a atuação dos pais é imprescindível, auxiliando a criança para que ela possa formular o seu autoconceito, separando-se do ambiente que a circunda. "Procuro observar muito. Dou muito carinho, tento não proteger demais e nem de menos" (L.F.L., 26 anos).
A exploração de tudo que a cerca, ambiente, seu corpo, o corpo de outros colegas é muito importante para a formulação do autoconceito, fazendo com que esta criança se torne um adulto engajado e com uma boa percepção de si mesmo. Quando a criança, por algum motivo perde a visão, fica difícil a reestruturação de uma nova imagem e auto-conceito, uma vez que esta já possuía uma imagem formada da estrutura corporal e um conceito de si mesma que foi destruído pela perda da visão. Difícil também se torna a formulação do autoconceito de uma criança com visão parcial. Em algumas situações são percebidas pelos outros como cegas, já, em outras, são percebidas como videntes.
Num mundo 80% visual, os deficientes visuais, têm que ser bastante maleáveis, flexíveis e de adaptação fácil para melhor enfrentarem as exigências do dia a dia.
Muitas vezes, são atribuídos aos cegos títulos de superioridade nas áreas perceptivas, uma vez que, para eles, pequenas pistas como: som, odor... lhes são bastante úteis. Decorrente disto vem a imagem de uma pessoa "superdotada".
Finalmente, é importante acrescentar que uma criança cega não é deficiente, apenas é uma criança portadora de uma deficiência. Tendo em vista este fato, para que ela seja uma pessoa normal e perfeitamente integrada na sociedade, devemos ter em mente que: "tudo que as outras crianças aprendem naturalmente deve ser ensinado passo a passo a uma criança cega".

O que é estimulação precoce?
É um processo que visa a promover o desenvolvimento psicomotor, sensorial, afetivo e social da criança.
Contudo, por si só não atinge o resultado almejado. Durante esses anos a FHR recebeu crianças de diversas regiões do País e níveis sociais distintos.
Todas as entrevistas, sessões, encontros e debates mostraram a importância da participação dos pais como elementos atuantes e informados.
É necessário que eles compreendam suas reações emotivas e intelectuais para com o filho deficiente. Seus sentimentos podem estar impedindo que eles compreendam bem o processo terapêutico e cooperem com ele. Uma avaliação, juntamente com os pais, das condições físicas, social, psicológicas, educacional e capacidade intelectual da criança, de maneira honesta, sensata e completa, Ihes trará subsídios para auxiliar no desenvolvimento da criança.
Apesar de, durante anos, terem sido os pais estimulados a entregar seus filhos a educadores e instituições especializadas, eles devem ser alertados de que a escola sozinha não é capaz de preparar a criança para a vida. Urge um esforço conjunto, buscando o desenvolvimento de sua capacidade de aprendizagem e autonomia.
As crianças deficientes requerem algumas modificações ou adaptações no programa educacional, a fim de que possam atingir o seu potencial máximo.
É bom que os pais tenham conhecimento sobre o crescimento e desenvolvimento de uma criança, como fator de referência. Assim, serão capazes de dar oportunidade a elas de conviverem naturalmente com os que enxergam, sem estar constantemente vigilantes e converter a sua incapacidade no foco central de sua vida.
A participação dos pais deverá ser precoce e permanente. É preciso estimular no bebê os sentidos remanescentes, em maior quantidade e melhor qualidade. Eles devem observar o desenvolvimento da criança e saber aproximadamente em que momento ela está pronta para uma nova experiência e auxiliá-la.
Desde o início, é preciso dar ao deficiente uma chance de conhecer o mundo no qual ele vive; isso lhe dará um sentimento de segurança. É importante que ele tome conhecimento de sua deficiência desde a mais tenra idade. Assim, ele perceberá que deve fazer certas coisas de maneira que os outros não fazem, servindo-se de outros sentidos, mas táo bem e muitas vezes melhor que seus amigos videntes. Ele deverá ser orientado de tal forma a se tornar natural nos gestos, na expressão fisionômica, na postura, na aparência e na mímica. Como ele não tem modelos visuais a copiar, deverá ser ensinado através de descrições orais, do tato, etc..., conforme o momento exigido.
Hábitos simples - o de dirigir a palavra a crianças antes de tocá-la ou tomá-la nos braços, a fim de não atemorizá-la; ou amamentá-la nos braços para que ela sinta amor e atenção - devem ser considerados relevantes em sua educação.
Muitas vezes, sob pretexto de segurança a criança é deixada no seu leito. Contudo, ela certamente perderá a oportunidade de explorar o seu universo. Objetos interessantes, colocados no leito ou em qualquer lugar em que esteja, a incentivará a reconhecê-los pelo tato.
Passear pela casa, dará um sentido ao mundo que a rodeia. Explicar, sempre que possível, o que se está fazendo e estimulá-la a copiar ações, certamente fará os com que tenha um comportamento normal.
Estas orientações e tantas outras devem ser dadas a partir do momento em que o diagnóstico é conhecido. Advém daí a importante participação do oftalmologista. Cabe a ele orientar para a reabilitação precocemente.
Infelizmente, a formação de médicos no Brasil não inclui conhecimento dás áreas educacionais relacionadas com estimulação sensório-motora e reabilitação de deficientes visuais. Caso fosse incluída nesses cursos de formação a cadeira de educação, grande parte dos deficientes não teriam problemas de ajustamento social e seriam encarados como indivíduos normais.
A influência que o oftalmologista exerce no ajustamento físico e social do paciente começa no instante em que ele se questiona se deve ou não revelar à familia do paciente. Muitas vezes, o fato de adiar a notícia traz ' ao paciente uma ilusão quanto à sua recuperação, o que leva a um atraso em seu desenvolvimento, embora passível de recuperação.
Há também a se considerar a frustração do profissional, que sente esgotados os recursos da ciência e se vê na posição de ser o primeiro a definir o destino dos seus pacientes. Entretanto, é preciso buscar a maneira adequada de proferir o diagnóstico. Uma postura indiferente ou agressiva pode comprometer seriamente a vida do seu paciente.
Um oftalmologista consciente pode orientar os pais quanto à necessidade da educação desde o berço, e indicar caminhos para o desenvolvimento normal da criança.
É importante que seja dada aos pais uma orientação e uma assistência que os ajudem a aceitar a incapacidade da criança, e também, que lhes sejam dadas sugestões específicas para encorajar seu filho no sentido de um desenvolvimento normal.
Convém acrescentar ainda a necessidade de um acompanhamento clínico periódico, no intuito de se prevenir novas moléstias e o agravamente do que ocasionou a deficiência. Estes controles periódicos fazem com que os pais se sintam atendidos e não procurem um outro profissional, que irá solicitar novos exames, submetendo o bebê a anestesias e manipulações explorativas vividas por ele como agressões que perturbam o equilíbrio necessário para um desenvolvimento normal.
É conveniente e adequado a formação, nos grandes centros de oftalmologia a de equipes multidisciplinares, assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, terapeutas ocupacionais, professores, etc., que sem dúvida alguma serão o suporte na educação dessas crianças.
O papel da assistente social na orientaçâo da familia, no que tange à aceitação do filho deficiente e à prevenção de outros casos, é o ápice desta pirâmide. Ela será capaz, após uma anamnese do caso, de encaminhá-lo adequadamente à assistência necessária.
O psicólogo e o terapeuta ocupacional, durante sessões semanais, proporcionarão à criança atividades lúdicas que a levarão ao desenvolvimento máximo de suas potencialidades.
Ainda neste trabalho de equipe, caberá ao pedagogo orientar a professora nas atividades a serem desenvolvidas em escolas normais.
Tudo isto deve ser feito dentro do centro de oftalmologia, com a participação do médico. No início, um atendimento individualizado, mas, sempre salientando a importância da convivência com outras crianças da mesma idade.
O processo de reabilitação é longo, árduo e exigente, e os pais necessitam de apoio nesta jornada. Precisam aprender a redistribuir seu tempo de acordo com as necessidades do filho, mas sem renunciar as suas próprias necessidades físicas, psicológicas e intelectuais.
Espera-se deles apenas que sejam humanos, pois serão o seu amor e a sua dedicação os maiores valores no desenvolvimento de seu filho.

Conotações Teóricas
Estimulação dos Canais Sensoriais
Antes de falarmos sobre a acuidade sensorial, devemos esclarecer um ponto importante. A noção popular de que os indivíduos cegos possuem uma habilidade sensorial superior, é completamente errônea. Todos os canais perceptivos (tacto, audição, olfato, gustação) são iguais tanto qualitativa quanto quantitativamente, tanto no indivíduo cego quanto no vidente. Devido à necessidade de utilizar-se dos sentidos remanescentes, o deficiente visual mantém uma atenção concentrada aos estímulos do meio, empregando os sentidos com maior destreza.
A visão é um sentido que está constantemente sendo estimulado. É através da visão que o homem recebe as informações do ambiente e desta forma decodifica todos os seus componentes. O mesmo não acontece com a pessoa cega. Desta forma deve-se dar a oportunidade de estimulação contínua dos outros sentidos.
A criança vidente, desde os primeiros dias de vida, interage com o meio e estabelece relações com este, utilizando para isso todos os canais perceptivos.
A criança deficiente visual vive limitada a um mundo auditivo, táctil, gustativo é olfativo. A estimulação destes canais a ajudará a formar e estabelecer as suas relações com o meio.
O lar da criança deve ser o local onde se oferece maior oportunidade de aprendizagem, pois é a partir daí que ela começará a formar sua idéia do mundo. Cabe à familia e ao orientador despertar na criança o senso de observação e exploração.

O Tacto
Para o recém-nascido a primeira percepção do mundo é táctil. O sentido do tacto é o que primeiro a coloca em contato com o mundo exterior. Toda a cobertura do seu corpo estará em contato com o universo fora do ventre materno. As primeiras sensações do nascimento são de natureza táctil, desde o escorregar pelas paredes do útero, até ser aparado pelas mãos que o acolhem.
Sabemos que a epiderme recebe as sensações de calor, frio e dor. Ao nascer a criança experimenta de imediato, as sensações de calor, frio, a maciez das paredes do útero e das mãos enluvadas que a amparam, associadas às contrações que o expulsam do útero, e a dor do corte do cordão umbilical.
A criança deficiente passa por toda esta experiência e a sensação táctil continuamente estimulada, possibilitará o dimensionamento do seu universo.

Audição
A audição desenvolve-se como parte do comportamento global do organismo em maturação.
Sendo a audição a principal fonte de aquisição da linguagem e da comunicação, é também através dela que o homem se relaciona com o meio.
O desenvolvimento da percepção auditiva começa com o relacionamento, localização e discriminação de sons.
Para se ter uma boa audição não basta somente ter o aparelho auditivo perfeito. É necessário um desenvolvimento das funções auditivas. O ouvir com atenção, é fator essencial para o desenvolvimento da linguagem e para a aprendizagem da leitura e escrita.
O ouvido pode, em muitos casos substituir a visão que falta. Por isto, devemos explorar as fontes acústicas. O ouvido torna-se o colaborador precioso para integrar a criança deficiente visual.

Olfato e Paladar
Numa sequência cronológica, os sentidos do olfato e do paladar são os que se seguem ao tacto.
O bebê estabelece uma relação afetiva com a mãe. Uma relação simbólica que se baseia na amamentação e nos primeiros cuidados.
O cheiro do seio materno, do leite e o sabor do alimento, serão assimilados; esta constitui-se a primeira relação que a criança fará entre sabor e odor.
Mais tarde esta relação será utilizada na discriminação e identificação de ambientes através dos odores que os caracterizam, auxiliando o deficiente visual na exploração e conhecimento do meio circundante.

Estimulação Motora - Psicomotricidade
"A psicomotricidade constitui-se na unidade dinâmica das atividades dos gestos, das atitudes e das posturas, enquanto sistema expressivo, realizador e representativo do "ser em situação" e da coexistência com o outro. A reeducação psicomotora se propõe a estimular o desenvolvimento de algumas funções não amadurecidas, de hábitos mal estruturados. Visa obter a movimentação consciente do corpo. Cada gesto deve ser sentido, pensado e interiorizado."

Atividades da Vida Diária
A adaptação social envolve situações em que o indivíduo precisa desempenhar satisfatoriamente determinadas tarefas relacionadas ao seu cotidiano.
Estas tarefas envolvem hábitos de alimentação, controle dos esfincteres, vestir-se e desnudar-se, higiene pessoal (escovar os dentes, lavar-se, etc.), hábitos à mesa, organização, etc.
É muito importante que a rotina da criança cega a leve, a cada dia, ao aperfeiçoamento das tarefas; assim, ela se sentirá orgulhosa de sua independência.
 

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Estimulação Precoce
por Kátia Oliveira
in
 Ensaios sobre a Problemática da Cegueira:
Prevenção - Recuperação - Reabilitação
FUNDAÇÃO HILTON ROCHA
Instituto de Olhos de Belo Horizonte 

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