“Por favor, deixe o meu filho participar e não se zangue com ele, como fazem os seus colegas, porque ele não entende como nós.”
Apareceu-me a mãe do Álvaro, à porta do dentista faz-de-conta, desesperada. Só queria que o filho fosse tratado do mesmo modo que os outros meninos cujos pais tinham pago o mesmo valor pelo bilhete para ali estarem.
Sorri e afirmei, sem qualquer dúvida, que o menino seria tratado de igual modo e permiti que, caso algo corresse mal, a mãe batesse no vidro para avisar.
A informação relativa à actividade assegurava que durante 20 minutos, o Álvaro seria dentista no faz-de-conta e receberia compensação monetária no final.
Durante 20 minutos, o Álvaro vestiu uma bata branca, pôs luvas nas mãos, viu uma dentadura quase tão grande como ele e por lá ficou agarrado a ela.
Perguntei-lhe se não queria ver outras coisas e tratar dos dentes do paciente que esperava por nós, de boca escancarada. Não tive resposta. O Álvaro escolheu falar para a dentadura; dizia palavras que eu não entendia. Repeti a pergunta e o silêncio era-me devolvido como resposta.
Observei-o com outro olhar e entendi o desespero da mãe.
O Álvaro tinha e tem autismo.
Não o importunei mais e a actividade continuou na terra-das-profissões-faz-de-conta. Fazia de conta que a profissão do Álvaro era ser conversador e falador com dentaduras. Terminado o tempo, era chegada a altura de reabrir a porta. Quem entrou, tinha de passar pela saída e antes receber as notas – em papel – por terem sido trabalhadores exemplares.
Ele deixou-se ficar até ao final dos finais. Não foi para a fila e queria levar a bata e a dentadura para casa.
Sentei-me no chão e falei com ele, mesmo que nenhum de nós nos compreendêssemos.
Pousou o objecto, virou-se e de repente quase me sufocou com o tamanho do abraço que me deu. E o inesperado aconteceu.
“Olha, eu quero ser dentista como tu, para brincar todos os dias. Gosto de ti.”
Levantei-me, abri a mão para ele a agarrar e fomos até à porta, onde a mãe o esperavam num misto incontrolável de felicidade e espanto.
“Muito obrigada. Muito obrigada.” – repetia-o muito – “obrigada por não se ter zangado com o meu filho. Posso dar-lhe um abraço?”
Era contra as regras esta coisa dos abraços. Não respondi.
Limitei-me a abraçá-la, com os olhos marejados, e ao Álvaro, agradecendo também, a possibilidade de o ter conhecido e tê-lo levado para um novo mundo do faz-de-conta.
Fez-de-conta que ali, naqueles 20 minutos, o autismo não existia para aquela mãe cansada…
Fez-de-conta que foram só 20 minutos. Foram mais, bem mais; foram e hão-de ser todos os minutos que eu me recordar que naquele dia, vesti a bata branca para receber aquele menino especial que me abraçou com a mesma força com que a mãe dele abraça a vida.