segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Cegos trocaram as bengalas pelas tesouras e foram ao Douro à vindima

fonte: LUSA | Observador

 

Cegos e amblíopes foram ao Douro à vindima: pousaram as bengalas, pegaram nos baldes e tesouras e tatearam as videiras para cortarem uvas.
Fernando Gabriel, 74 anos, toca a videira, desvia as folhas e procura os cachos das uvas. Segue à risca as instruções dadas pelo monitor da Quinta da Avessada, no planalto de Favaios, concelho de Alijó. “Temos que procurar os cachos. Explicaram para se pôr a mão por baixo, para cortar em cima e deitar no balde”, afirmou à agência Lusa. Fernando é cego desde os 18 anos, trabalhou como telefonista, está reformado e fez questão de vir com o grupo da delegação do Porto da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) à procura de uma nova experiência.

Com a ajuda da mulher, Teresa Gonçalves, avança para uma outra videira. Às vezes encontra os cachos emaranhados e é “mais trabalhoso” encontrar o pé da uva, onde coloca a tesoura, mesmo encostada ao dedo, e corta.
“Uma das recomendações que nos fizeram foi de chegarmos com os 10 dedos ao final”, gracejou.

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Esta foi também a primeira vez que Maria do Céu Francisco, 57 anos, vindimou. “Correu bem. Consegui apanhar um balde dos grandes de uvas, não é aquele pequenino, dos outros grandes”, frisou. Ficou cega aos três anos e foi muito protegida pela mãe, que nunca a deixou trabalhar.

“Mexer nas folhas, pegar o cacho na mão, ser eu a cortar, saber que esse cacho vai dar vinho para outras pessoas beberem, é uma coisa muito importante. Eu achava o vinho muito caro, mas agora, vendo o trabalho que ele dá, acho que o preço está muito justo”, sublinhou.

O casal Francisco, 48 anos, e Alexandra Figueiredo, 41 anos, aventurou-se nesta vindima com a ajuda da filha que ia saltitando entre os dois para ajudar e dar algumas instruções. “Está a ser muito interessante. Estou a gostar muito”, sublinhou Francisco.

Para além da visão reduzida, Susana Monteiro, de 34 anos, tem uma deficiência motora no braço direito que a obriga a sentir e cortar apenas com a mão esquerda. “Correu bem. Eu parto para as coisas sempre com um pensamento positivo, tentando não bloquear e não complicar as coisas só por complicar”, frisou.

Susana faz parte da direção da ACAPO e referiu que, quando sentiu perda de visão, deixou de sair de casa sozinha. Hoje já o faz outra vez e disse que é feliz, como qualquer outra pessoa.
“Recusamo-nos a ficar isolados, a ficar em casa. Nós não somos os cegos e os coitadinhos. Somos pessoas que temos mobilidade reduzida e há coisas que nós não fazemos, mas lutamos para que sejamos autónomos e fazemos muitas atividades”, afirmou Paula Costa, de 48 anos e presidente da delegação do Porto da ACAPO.
Este grupo já experimentou conduzir jipe e, depois da vindima, segue-se o caiaque.

Paula perdeu 95% da visão há 10 anos. “Quando vamos para as vinhas, para uma aldeia, para o monte, vemos a paisagem. Quando perdemos a visão não vemos a paisagem mas, se calhar, sentimos o resto que as pessoas com visão não sentem, que é o barulho dos pássaros, os ruídos, os cheiros”, explicou. Nesta experiência na vinha, destacou o barulho das tesouras, o toque das folhas, o sabor das uvas.

A Quinta da Avessada recebe milhares de turistas durante o ano. No período de vindima o número de visitantes praticamente duplica nesta unidade que possui uma enoteca, onde se conta a história do Douro e se desvendam os segredos da produção de vinho e do moscatel de Favaios.

“É a primeira vez que estamos a ter cegos a cortar uvas. Cortaram 20 bombos de uvas em 45 minutos, ninguém cortou os dedos e ficaram todos muito satisfeitos”, salientou o proprietário, Luís Barros. A equipa da quinta preparou-se para um cuidado extra com este grupo mas, segundo o responsável, “não foi preciso”. “Eles conseguem-se orientar muito bem e cortaram muito melhor do que algum pessoal do campo”, brincou.

A vindima foi acompanhada pelos sons do acordeão e do bombo e ainda houve tempo para um baile improvisado.

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