quarta-feira, 29 de julho de 2015

Uma mulher cega vai chegar a deputada: "Uma alegria mas também uma tristeza - porquê só agora?"

fonte: DN

Uma mulher cega vai chegar a deputada 
Entrevista a Ana Sofia Antunes, candidata a
deputada do PS pelo círculo de Lisboa

>> Como é que surgiu esta ideia de ser candidata a deputada pelo PS?

Surgiu como um convite por parte de António Costa que eu, depois de ponderar devidamente, aceitei.

>> Trabalhou muito com ele na Câmara Municipal de Lisboa?

Não muito diretamente com ele. Mas assessorei durante vários anos o vereador da Mobilidade na Câmara de Lisboa, o professor Nunes da Silva, e fazia assessoria jurídica na câmara. Em função da minha área de interesse, o facto de ser uma pessoa com uma deficiência e de estar muito ligada ao movimento das pessoas com deficiência, fiz sempre muita pressão na câmara com um plano de acessibilidade pedonal, que teve grande apoio e incentivo de António Costa. Era outra das minhas tarefas. O executivo era dirigido por António Costa, com o qual trabalhei muito, embora indiretamente, ao nível da revisão da regulamentação da câmara, em 2012 e 2013.

>> E a cidade está agora bem equipada?

Isso ainda é um bocadinho uma miragem, mas temos agora bons instrumentos para começar a fazer obra física, é isso que interessa. Não podemos avançar para a obra sem planificação, mas toda a planificação serve de muito pouco se não tomarmos a decisão de fazer o que interessa, que é obra física no espaço público. Há coisas que já começaram a ser feitas nas passadeiras - rebaixamentos e sinais sonoros, por exemplo -, mas temos de reconhecer que ainda há muito para fazer.

>> Os direitos dos deficientes serão o seu principal cavalo de batalha na Assembleia da República?

Obviamente que sim, por todas as razões. Sou uma pessoa com uma deficiência visual congénita [de nascença]. Não faria sentido nenhum, tendo esta oportunidade, não constituir como minha principal prioridade o trabalho em prol das pessoas com deficiência. Sinto uma grande alegria porque nunca uma pessoa com uma deficiência fora indicada para a Assembleia da República nem para qualquer outro cargo de relevo, de eleição ou nomeação. É um momento de alegria, mas também de tristeza: porquê só agora. Porque é que isto só está a acontecer em Portugal agora?

>> E tem alguma explicação para isso? Passará por alguma incapacidade de o movimento associativo dos deficientes se organizar de forma eficaz e constituir um grupo de pressão com poder?

Não creio que isso passe pela incapacidade de organização dos deficientes. A nossa capacidade de organização não é diferente da que existe nos outros países europeus. Não estamos atrás deles, pelo contrário. Mas há muitos anos que há ministros deficientes noutros países - como a Suécia ou Inglaterra ou a Grécia -, e já nem sequer falamos em deputados, que são imensos. Já houve países com presidentes da República com deficiência. Obviamente que a pressão tem de ser feita, mas tem de ser aberto espaço para os deficientes e esse espaço não existe na representação política, como não tem existido em diversos outros níveis da vida social.

>> Sente alegria nas pessoas que conhece no associativismo de defesa dos deficientes?

A notícia ainda não foi muito divulgada mas da parte das pessoas que me conhecem há um sentido de alegria.

>> E independentemente das opções partidárias?

Não noto que isso seja relevante. As pessoas sentem-se representadas por uma pessoa com deficiência, independentemente da bancada.

>> É jurista. O que é premente fazer no ordenamento legislativo português em defesa dos deficientes?

A grande prioridade para os deficientes é sentirem que têm uma vida digna. E isto não é uma questão legal, é uma questão social. Isto está na mente das pessoas, na forma como se aceitam umas às outras. A possibilidade de uma pessoa sentir que tem uma vida digna passa por vários aspetos. Olhe, por exemplo, pela educação. As pessoas sentem que há cada vez mais restrições a educação para deficientes. A educação especial fornecida pelo Estado recuou brutalmente: professores de apoio que existiam foram retirados, houve equipamentos que deixaram de funcionar, escolas de referência deixaram de funcionar. E quando o Estado diz que vai apostar em escolas de referência porque não tem meios para equipar condignamente todas as escolas, e assim só aposta nalgumas. Se vamos selecionar só algumas, então teremos de fazer espaços de privilégio. Não posso dizer a uma criança de Vila Real que tem de fazer 70 quilómetros por dia para aceder a uma escola de referência, e depois esta escola não tem o apoio que devia ter. E não falamos só de escola básica. Continua a revelar o nosso terceiro-mundismo o facto de os apoios educativos para crianças com deficiência se limitarem ao ensino obrigatório. Em 2015, um deficiente que entre numa universidade está na maior parte dos casos por sua conta. E no acesso ao emprego. Se falamos em níveis altíssimos de desemprego jovem [um terço, é o número normalmente usado], então para os jovens com deficiência esse valor pode triplicar. Em 2012, um estudo da ACAPO revelava 60% de desemprego entre jovens cegos. Isto passa por uma mudança de mentalidades - mas também uma necessária revisão dos mecanismos de apoio a empresas que contratem pessoas com deficiência. Tudo isso tem de ser revisto. E no Estado também: o decreto-lei 29/2001 obriga a que uma em cada três vagas sejam ocupadas contratando-se uma pessoa com deficiência. Não foram poucos os casos em que para se contratar quatro pessoas se abriam dois concursos para duas pessoas cada, porque abaixo de três vagas não é necessário cumprir a quota. Essa lei foi muito contornada.

>> Diria que a sua intervenção terá um pendor quase suprapartidário?

Esta causa não é de esquerda nem de direita - é uma causa. Mas eu sou uma mulher de esquerda. E senti neste programa do PS uma preocupação com as condições de vida das pessoas com deficiência - e acredito nisso, pelo trabalho que fiz com António Costa na Câmara de Lisboa. Acredito que ele é o homem com a garra necessária para assumir esta cruzada, para pagar estas múltiplas dívidas de consciência.

>> Mas dá um tempo a António Costa? Acha que ao fim de um ano pode chegar à conclusão de que isto é mais do mesmo e ir embora?

Não acredito que tenha de chegar a esse ponto. Pelo menos nesta fase ainda não acredito. Acredito que à frente desta lista está uma pessoa com capacidades para se ir mais além e para nos representar nesta luta, para nos dar abertura para trabalharmos os instrumentos legais de que precisamos.
 

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