sábado, 30 de maio de 2015

SANGUE NO OLHO


Blind woman - Diego Velazquez, mid 17th c.
Mulher cega - Diego Velasquez

O estouro
Estava acontecendo. Naquele momento. Fazia tempo que tinham me avisado e, no entanto. Fiquei paralisada, as mãos molhadas de suor empunhando o ar. As pessoas na sala prosseguiam com suas conversas e gargalhadas, até sussurrando exageravam, enquanto eu. E alguém gritava mais alto que os outros, baixem o volume do rádio, não façam tanta bagunça que à meia-noite em ponto os vizinhos vão chamar a polícia. Me concentrei naquela voz estrondosa que parecia não cansar de insistir que mesmo aos sábados os vizinhos iam dormir cedo. Aqueles gringos não eram gente de passar noites em claro como nós, não eram dados a farras, de jeito nenhum. Eram protestantes e protestariam se não os deixássemos dormir em paz. Do outro lado das paredes, sobre nossos corpos e também sob nossos pés, agitavam-se todos aqueles gringos acostumados a madrugar já com a meia no pé e os cadarços amarrados. Gringos que, com a roupa de baixo impecável e a cara engomada, sentam-se toda manhã para comer seu cereal com leite frio. Mas ninguém ligava para aqueles que não conseguiam pregar os olhos, para suas cabeças afundadas sob os travesseiros, para suas gargantas atulhadas de comprimidos que não lhes trariam nenhum alívio se continuássemos sapateando em seu descanso. Sapateando eles, lá na sala. Eu não.
Eu fiquei agachada no quarto, com o braço estendido para o chão. E de repente me peguei pensando na insuportável vigília dos vizinhos, imaginando que iam apagar as luzes depois de enfiar tampões ressecados nos ouvidos; que os empurrariam com tanta força que o silicone acabaria estourando.
Pensei que preferia ser eu a ter os tampões arrebentados, ser eu a ter os tímpanos trepanados por seus estilhaços. Queria ser a velha que cobre firmemente as pálpebras com a máscara, para tirá-la em seguida e acender a luz. Queria isso porque minha mão ainda suspensa não encontrava nada. Só gargalhadas etílicas atravessando as paredes e me salpicando com sua saliva. Só a voz estridente da Manuela dizendo sem parar por cima da gritaria, pô, galera, um pouco de silêncio! Não, por favor, não, pensei, continuem falando, continuem vociferando, uivem, soltem grunhidos se for preciso. Morram de rir. Eu dizia isso a mim mesma com o corpo todo tenso, embora poucos segundos tivessem se passado. Tinha acabado de entrar no quarto de casal, acabado de me inclinar, eu, em busca da minha bolsa e da seringa. Precisava me injetar à meia-noite em ponto, mas não ia conseguir, porque o precário equilíbrio dos casacos derrubou minha bolsa no chão, porque em vez de parar cuidadosamente, como devia, eu me dobrei e estiquei o braço para apanhá-la. Foi então que um fogo de artifício atravessou minha cabeça. Só que o que eu via não era fogo e sim sangue vertendo dentro do meu olho. O sangue mais espantosamente belo que já vi na vida. O mais incrível. O mais assombroso. Fluía aos borbotões, mas só eu podia percebê- lo. Vi com absoluta clareza como o sangue se adensava, vi que a pressão aumentava, vi que estava atordoada, vi que meu estômago revirava, que sentia ânsia de vômito e, no entanto. Não me levantei nem me movi um milímetro, nem mesmo tentei respirar enquanto observava o espetáculo.
Porque essa era a última coisa que eu veria, naquela noite, com esse olho: um sangue intensamente negro.

Sangue escuro
Já não haveria recomendações impossíveis. Que eu parasse de fumar, primeiro, e segundo que não prendesse a respiração, que não tossisse, que de jeito nenhum levantasse pacotes, caixas, malas. Que jamais me inclinasse nem me jogasse na água de cabeça. Proibidos os arroubos carnais, porque até mesmo num beijo apaixonado as veias podiam se romper. Eram frágeis essas veias que tinham brotado da retina e se esticado e se enroscado na espessura do vítreo.
Era preciso observar o crescimento dessa trepadeira de capilares e vasos, vigiar dia a dia sua expansão milimétrica.
Isso era tudo o que podia ser feito: espreitar o movimento sinuoso dessa trama venosa que avançava para o centro do meu olho. Isso é tudo e é bastante, sentenciava o oftalmologista, isso, é isso, repetia, desviando suas pupilas para meu histórico clínico, que se transformara num calhamaço, num manuscrito de mil páginas embutidas numa pasta grossa. Juntando as sobrancelhas grisalhas, Lekz escrevia uma biografia exata de minhas retinas, o prognóstico incerto.
Depois limpava a garganta e me apresentava os pormenores de inovadores protocolos de pesquisa. Comentou, de passagem, os transplantes em fase experimental. Só que eu não era qualificada para nenhum experimento: ou era pojovem demais, eu, ou as veias eram grossas demais, ou o procedimento arriscado demais. Era preciso esperar que os resultados fossem publicados em revistas especializadas e que o governo aprovasse os novos medicamentos.
O tempo também se prolongava como veias arbitrárias e o oftalmologista continuava falando sem trégua, driblando minha impaciência. E se houver uma hemorragia, doutor, eu dizia, apertando seus protocolos entre os dentes. Melhor não pensar nisso, dizia ele; melhor não pensar em nada, só continuar observando e fazendo anotações que depois ele mesmo não conseguiria decifrar. Mas logo levantava a vista da caligrafia ilegível para convir que, se isso acontecesse, se chegasse a acontecer, se efetivamente se desse essa ocorrência, aí veríamos. Você verá, respondi, refugiada em meu ódio, sem articular uma única letra: espero que distinga alguma coisa quando eu não mais. E isso já tinha acontecido.
Eu não estava vendo nada além de sangue num dos olhos. Quanto tempo o outro ia aguentar sem se romper?
Esse era, enfim, o beco sem saída, o beco sombrio onde só se ouvem anônimos gritos prisioneiros. Mas não, talvez não, pensei, abraçando a mim mesma, sentando em cima dos casacos naquele quarto que era da Manuela, encolhendo os dedos dos pés enquanto meus sapatos balançavam feito mortos. Não, pensei, porque com os olhos já estourados eu poderia voltar a dançar, pular, dar chutes nas portas sem o risco de me esvair em sangue; poderia me jogar da sacada, enterrar uma tesoura aberta entre as sobrancelhas. Virar a padroeira do beco ou achar uma saída. Pensei nisso sem pensar, fugazmente. Comecei a revirar as gavetas em busca de um maço de cigarros esquecido e de um isqueiro. Ia incendiar uma unha acendendo o cigarro e me entupir de tabaco antes de voltar àquele consultório para dizer ao Lekz, empinando o nariz, me diga o que vê agora, doutor, me diga, fria e urgente, sufocada pelo ressentimento, como se suas mãos enluvadas tivessem arrancado meu olho doente pela raiz: diga logo, diga o que quiser, porque ele já não ia conseguir me dizer mais nada. Era noite de sábado, ou melhor, de domingo, e não havia como localizar o oftalmologista.
Mas o que ele poderia dizer que eu já não soubesse?, que eu tinha litros de rancor dentro do olho?
FIM


fotografia de Lina Meruane
          Lina Meruane
Elogiada por Roberto Bolaño e por Enrique Vila-Matas, Lina Meruane tem o seu primeiro livro publicado no Brasil, pela Cosac Naify. A escritora nasceu em Santiago, Chile, em 1970, e mora nos Estados Unidos, onde fez doutorado e dá aulas de cultura latino-americana na Universidade de Nova York.
O romance “Sangue no olho” narra, na primeira pessoa, a história exasperante de uma mulher que está ficando cega, com os olhos cheios de sangue, sem conseguir chegar a um diagnóstico. Aos poucos, conforme a enfermidade avança, a relação com a família e sobretudo com o namorado é colocada à prova. Numa conversa sobre o romance, Lina Meruane diz que o considera ao mesmo tempo “duplamente autobiográfico” e “completamente ficcionalizado”.  in O Globo.

 
excerto de:
'Sangue no Olho'
autora: Lina Meruane
tradução: Josely Vianna Baptista
editora: Cosac Naify, 2015

Sem comentários:

Enviar um comentário