Ana Margarida Carvalho & Rita Pereira
Psicólogas na ACAPO
Brincar é uma necessidade natural partilhada por todos os mamíferos. Para o Homem, brincar é sinónimo de divertimento, de distração, de fuga da realidade e das obrigações sociais inerentes ao trabalho. Contrariamente para a criança, brincar é um assunto muito sério. Brincar está então para a criança, como o trabalho está para o adulto. Do mesmo modo que o adulto procura realização pessoal através do trabalho, a criança, quando brinca, também se realiza porque se põe à prova, porque se experimenta em conquistas e frustrações, descobre os seus limites e potencialidades, aprende, comunica e estabelece relações de afeto.
Quando a criança brinca espontaneamente está a expressar e a pôr em prática o seu imaginário, reproduzindo não só o mundo exterior que vai conhecendo, mas também o seu mundo interior. Deste modo também comunica, estabelece ligações afetivas, transmite e recebe informação essencial, numa fase em que ainda não domina a linguagem das palavras.
Brincar para a criança tem diferentes e importantes funções: é fonte privilegiada de prazer, permite-lhe acalmar angústias, organizar a agressividade, experienciar as mais diversas situações, colecionar vivências e integrar regras da vida em sociedade.
Sabemos que o primeiro sorriso de um bebé aparece geralmente em resposta a um rosto humano. Esta reacção é automática e significa que temos uma predisposição inata para nos relacionarmos com o outro. As tentativas de comunicar da parte da criança surgem inicialmente pelo choro e pelo sorriso, pelos sons que emite quando palra.
É a boa resposta do outro a estas manifestações que permite o desenvolvimento global do bebé logo desde os primeiros meses de vida, organizando as suas interações e transformando-as em comunicação. Os primeiros passos neste domínio dão-se assim através do estímulo que as “gracinhas” e as primeiras brincadeiras de interação provocam e são elas que geram na criança o prazer desta fase. Nesta altura uma boa gargalhada da criança pode resultar de vocalizações e sorrisos do adulto, do toque ou do jogo de lançar ou agitar a criança que muitos gostam de fazer.
Posteriormente, próximo do final do primeiro ano de vida, o aumento gradual de conhecimento sobre o mundo e a forma como este funciona traz à criança frustrações e angústias normais e necessárias porque a impelem a crescer. Por exemplo, a consciência de que o mundo tem muito de desconhecido e de que a mãe não está sempre presente é extremamente assustadora e geradora de uma das primeiras angústias – angústia de separação. Esta angústia leva a criança a procurar descobrir, através das suas brincadeiras, formas de compreender que a ausência da mãe não significa o seu desaparecimento definitivo. Nesta altura, o ato de esconder-se e voltar a aparecer, como fazê-lo com brinquedos ou com outros é, não só um jogo altamente prazeroso para a criança, como extremamente necessário para a aquisição da noção de que os objetos ou pessoas existem, mesmo que não estejam ao seu alcance. Esta capacidade é um fator-chave do desenvolvimento cognitivo mas também afetivo na medida em que a sua angústia de separação será, a partir desta altura, muito melhor tolerada. Do mesmo modo, esta capacidade ajuda a criança a sentir-se mais segura e a tolerar a impossibilidade de ter sempre os seus desejos imediatamente satisfeitos. Obriga-a a perceber que terá que resistir às frustrações por mais difíceis que sejam.
A tristeza e a zanga são sentimentos que surgem nestas alturas, ligadas a um outro processo essencial no desenvolvimento e que o ato de brincar permite organizar - a agressividade. A agressividade pode exprimir-se de forma natural através, por exemplo, dos «jogos de faz-de-conta» em que se pode lutar, morrer e matar sem consequências reais. Pode também encontrar-se nos jogos de competição em que se experimenta a sensação de conseguir ganhar algo ou perceber que é possível perder sem se sentirem destroçados. Deste modo, a criança aprende a conhecer-se melhor, experimenta-se em diferentes papéis, conhece e aplica regras e sobretudo estrutura a sua agressividade, criando condições para vir a ser um adulto combativo e ambicioso, corajoso e persistente, que cumpre regras e respeita os outros.
Com a aquisição da linguagem a criança inicia o desenvolvimento da capacidade simbólica, é através dela que pode brincar “fazendo-de-conta”. Esta é outra capacidade essencial ao desenvolvimento afetivo e relacional, à criatividade e à aprendizagem, porque lhe permite perceber os símbolos. A criança consegue com este tipo de jogo, imitar os outros, procurando assim compreender melhor a realidade e em particular o mundo dos adultos, assimilando, entre outros, modelos de comportamento e relações e regras de convivência.
As crianças com deficiência visual, como quaisquer outras crianças, gostam e precisam de brincar para se desenvolverem saudavelmente. Têm as mesmas vontades, os mesmos interesses e desejos que qualquer outra criança da sua idade, embora possam encontrar dificuldades no seu desenvolvimento quando, por falta da visão, não têm acesso ao meio envolvente e à informação que as circunda, que é sobretudo visual.
O mundo das crianças com deficiência visual é aquele que elas «alcançam com as suas mãos» e com os restantes sentidos. Por isso, necessitam de um mediador que leve até estas o mundo que não alcançam. Por exemplo, a criança com deficiência visual não consegue saber de forma independente e imediata a que distância é que estão as nuvens, que o sol é redondo e amarelo, que o João é mais gordinho e baixinho do que o Pedro, que às vezes à noite é estrelada, que o parque tem um escorrega…
Na criança com deficiência visual, os restantes sentidos não se ativam espontaneamente de forma a compensar a falta de visão, pelo que é essencial serem estimulados. Neste sentido, para estas crianças a necessidade de brincar é ainda mais importante porque o brincar permite ligarem-se aos outros e ao mundo. É fundamental que o adulto acompanhe a criança na narrativa das suas descobertas, promova o seu sentimento de segurança e controle sob o ambiente que a rodeia, de modo a que a esta sinta o desejo, a curiosidade e a iniciativa de brincar e de conhecer cada vez mais, características essenciais para o seu futuro como pessoa.
Ao brincar, a criança com deficiência visual está a caminhar no sentido da apreensão dos significados, está a respeitar as suas necessidades e a alimentar os seus desejos. Desenvolve a sua espontaneidade, a sua capacidade de fantasiar e de estar em relação, estimulando os seus sentidos. Tal como qualquer outra criança, integra-se no mundo, organizando-se emocionalmente e cognitivamente.
O adulto, se por um lado deve estar atento às adaptações que a falta de visão exige, deverá também ter consciência do limiar que existe entre o adaptar «saudável» e as atitudes de superproteção que nascem do seu próprio medo e insegurança.
Do ponto de vista da psicologia, o medo e a insegurança têm origem nas dificuldades que as pessoas encontram na gestão dos seus próprios sentimentos perante alguém com deficiência. Estas atitudes relacionam-se com a visão tradicional da sociedade que olha com «pena» para estas pessoas. Por isso, é comum encontrá-las ainda em alguns pais e profissionais que lidam com estas crianças.
No entanto, e na verdade, atitudes como estas levam à superproteção e à fuga da realidade no que toca às capacidades e limites das crianças. «Fazer a papinha toda» à criança é dizer-lhe que ela não é capaz, é fomentar a sua insegurança, baixa autoestima, imaturidade e consequente dependência, travando o seu processo de desenvolvimento e de aprendizagem.
Brincar espontaneamente, brincar ao «faz de conta», brincar com objetos mais mecânicos ou outros que conjugam diferentes materiais e texturas num apelo à imaginação e à criatividade, é tão importante como brincar com os utensílios da vida diária (mediando o perigo das suas utilizações). Estes que, à partida, para um adulto, não são encarados como brinquedos, poderão ser para qualquer criança, em particular com deficiência visual, uma brincadeira especial e que lhe fornece mais imagens do mundo.
Brincar não tem limites. Ao brincar, a criança está a desenvolver-se e a crescer sem se aperceber que está numa situação de aprendizagem. Para a criança com deficiência visual é especialmente importante que o outro promova o seu sentimento de segurança, bem como o seu dinamismo e o poder de fantasiar através de brinquedos, materiais e métodos que respondam às suas necessidades e, acima de tudo, através de relações gratificantes que combatam o isolamento e a falta de contacto com o ambiente envolvente.
Dar a oportunidade e estimular a atividade de brincar numa criança é, assim, permitir-lhe construir as bases para que venha a ser um adulto proativo e com a capacidade de criar e recriar-se ao longo da sua vida.
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in Louis Braille – Revista especializada para a área da deficiência visual
JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2013
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