quinta-feira, 19 de março de 2015

PAIS CEGOS


 
[Reflexões sobre as dificuldades e estratégias dos pais cegos, quando cuidam de seus filhos. As situações referiam-se a amamentar, banhar, alimentar, acidentes domésticos e dar remédio, e o tato, audição e olfato e a rede social contribuindo para sua autonomia.]

O Cego e a Filha - Alfonso Castelao, aguarela - início do séc. XX
O Cego e a Filha - Alfonso Castelao
aguarela - início do séc. XX
 
INTRODUÇÃO
No processo de desenvolvimento do ser humano, os atributos do cuidar são fundamentais e não há pessoa melhor para falar, demonstrar e dedicar-se ao cuidado dos filhos que os pais. Esses exercem uma forma de cuidado especial e, muitas vezes, essa se torna sua razão existencial e essencial para o desenvolvimento dos filhos(1). Contudo, deficiências podem interferir no cuidado dos filhos e é importante que os profissionais de saúde avaliem como se sentem esses pais, quais suas dificuldades e que auxílios necessitam(2).
Para subsidiar a reflexão, realizou-se entrevista em profundidade, técnica dinâmica e flexível, útil para a apreensão de uma realidade, tendo como questão norteadora: fale sobre sua experiência, como cego, no cuidado dos seus filhos. Os sujeitos foram pais que tiveram filhos após a cegueira e que aceitaram participar do estudo após assinar termo de consentimento livre e esclarecido, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (COMEPE), sob o nº 345/05.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Seleccionou-se um pai e uma mãe cegos, identificados como Maria e José. Maria, 28 anos, casada, dona de casa, estudante do ensino fundamental, mãe de quatro filhos. José, 53 anos, casado, pai de duas filhas, servidor público. A partir da leitura exaustiva das entrevistas procedeu-se a recortes agrupados em dificuldades e estratégias encontradas para cuidarem dos seus filhos. No interior das tabelas há categorias temáticas para melhor visualização.

Tabela 1
Dificuldades encontradas pelos
pais cegos para cuidar dos seus filhos
MARIA
Alimentação: ... não sabia amamentar, segurar, colocar para arrotar...
Higiene: ... não sabia dar banho, tinha medo da criança cai r, beber água do banho....não cuidava do umbigo, o curativo me deixava preocupada...
Cuidados de saúde: ... o remédio líquido... não tem uma marquinha no copo que possa me orientar...
Acidentes: ... o remédio líquido... não tem uma marquinha no copo que possa me orientar...
JOSÉ
Papel de pai: ... que os filhos não se sintam responsáveis por nós... cegos que tiveram filhos de visão normal e que largaram bengala, largaram braille e ficaram dependentes das crianças...
Acidentes: ... cuidados com remédio...marcar em braile...

Amamentar requer ajuda para ser feito corretamente e prevenir problemas na mama puerperal e o desmame precoce(3). Uma boa pega é fundamental para prevenir problemas na mama e propiciar vínculo afetivo(4). Maria referiu dificuldade no banho, insegurança sobre a temperatura da água, ocorrência de acidentes, aos produtos a serem utilizados na higiene da criança. Utilizar o tato e olfato ao cuidar da criança, a disposição dos utensílios e medidas de segurança transmitem autoconfiança à mãe e preservam o bem-estar da criança.
Para administrar medicamentos líquidos, os pais adotam copo com dosagem única, o que permite perceber quando está cheio por meio do toque.
Acidentes domésticos são prevenidos mantendo em local adequado materiais de limpeza, produtos tóxicos e cáusticos e as crianças longe do fogão, de janelas e escadas. A prevenção de acidentes faz parte da habilitação das pessoas cegas nas atividades da vida diária e os primeiros socorros podem ser ensinados com tecnologia educacional adequada(5-6).
José destaca sua responsabilidade como pai e manifesta repúdio aos que delegam esse papel e se apoiam no filho vidente, em um momento da vida em que a criança mais precisa dele. Apesar disso, os pais cegos encontram estratégias para cuidar dos filhos.

Tabela 2
Estratégias encontradas pelos pais cegos
para cuidarem dos seus filhos
MARIA
Aprendizagem: ... fui cuidando sozinha... mas tudo o que eu fazia tinha que pegar... pra gente que não enxerga ter que pegar...
Alimentação: ... amamentar fui aprender com o tempo... depois fui dando outras coisas, frutas, sopinha, eu mesma fazia...
Higiene: ... comecei a trocar uma fralda... minha irmã... me ensinô a banhar, cuidar do umbigo, trocar, vestir... eu colocava a água com a mão sabia a temperatura... os outros três fui eu que cuidei...
Cuidados de saúde: ... levava pra vacinar, olhava a temperatura do corpo... pezinhos e nos braços... sinal de febre, gotas... boto o dedo sinto e conto as gotas...
Acidentes: ... tinha um pano pegando fogo... a menina de seis anos apagou porque ela enxerga... se você conversar, elas vão guardando aquilo e não vai teimar...
JOSÉ
Aprendizagem: ... a gente procurou criar nossos próprios recursos, nossos próprios métodos para poder lidar com o problema...
Alimentação: ... consegue tomar conta da casa, das crianças ...questão da alimentação...
Cuidados de saúde: ... remédios, a gente faz marca em braille ou com o nome do remédio... dos cuidados que todo pai tem que ter nós tivemos, criando nossos filhos...
Acidentes: ... organizar... sempre no mesmo lugar... tatear ou cheirar... tudo marcado...
Papel de pai: ... com a minha bengala para que eu dependesse da minha bengala e não das filhas... alguém disse: "tome conta do seu pai" ... eu disse: "não é ela que está comigo, sou eu que estou com ela, eu é que sou responsável"
A cegueira: ... as filhas convivem bem com a minha cegueira... percebem que para eu ver eu tinha que pegar... na mente delas eu conseguia ver tudo com a mão... a mão na fotografia ... a tela da televisão...

As estratégias adotadas pelos pais cegos para cuidarem dos seus filhos apoiam-se nos sentidos remanescentes, o tato, o olfato e a audição. Usar redes de apoio é fundamental para o auxílio no cuidado pela mãe cega que as associou com estratégias independentes de cuidar. Maria foi apoiada pela irmã que a ensinou a alimentar, banhar. Contou com a solidariedade da vizinha que a socorria nas situações de imprevisto, quando levava a criança à pediatra, recebia instruções como identificar febre e secreção em ferimentos.
Para alimentar seu filho com colher, segura a cabeça da criança para ter noção da posição da boca. As porções sólidas são oferecidas com a colher em pequena quantidade e as líquidas, em copo. A palavra-chave usada foi o pegar, ou seja, tocar a criança, palpar o alimento, sentir a temperatura da pele e da água. A organização dos objetos é fundamental para a execução de cuidado com os filhos. A autonomia foi evidenciada, mesmo tendo sido enfatizada a procura de apoio de outras pessoas.
Ao administrar medicações em gotas, sentem nos dedos as gotas caírem. Apesar de a legislação prever a identificação dos medicamentos em braille, isso ainda não foi plenamente adotado. As receitas médicas transcritas para o braille também é direito do cego(7). Os profissionais de saúde admitem não dominar habilidades para assistir essas pessoas, relatam não saber se comunicar com pessoas cegas e surdas(8).
A ocorrência de acidentes domésticos mostra que o domicílio e as medidas preventivas não são adequados(5). As atividades da vida diária a serem realizadas pelos cegos incluem cozinhar, lavar, passar, limpar a casa e fazem parte da habilitação recebida em escolas especiais(9). Os cegos utilizam meios não visuais para estabelecerem relações com as pessoas e com os objetos que os cercam. Jamais se deve privá-los de uma experiência real, pois elas maximizam seu ajustamento social(10). O depoimento de José é um exemplo de ajustamento, seguro de si e com boa autoestima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pôde-se constatar a complexidade de situações vivenciadas pelos pais cegos quando amamentam, alimentam, banham e administram medicamentos. O pai cego destaca o relacionamento social, a mãe cega enfatiza o cuidado biológico.
Desenvolvem estratégias criativas no cuidado com os filhos com o uso do olfato e do tato, o apoio de familiares e vizinhos. Os profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros, devem estar mais próximos a essas pessoas e produzir conhecimento para esse grupo tão pouco contemplado em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS
  • 1. Grossmann K, Grossmann EK. Maternal sensitivy. In: Crittenden PME, Claussen AH, editors. The organization of attachment relationship: maturation, culture and context. New York: Cambridge University; 2003. p. 13-37.
  • 2. Behl DD, Akers JF, Boyce MJ, Taylor MJ. Do mothers interact differently with children who are visually impaired? J Visual Blindness 1996; (90):501-11.
  • 3. Swanson V, Power KG. Initiation and continuation of breastfeeding: theory of planned behaviour. J Adv Nurs 2005 May; 50(3):272-82.
  • 4. Handa S, Takahasi C, Morimoto M. The management of puerpera by visiting midwives one month after delivery. Stud Health Technol Inform 2006; 122:940.
  • 5. Pagliuca LMF, Costa NM. Deficiente visual: avaliação de risco para acidente doméstico. Esc Anna Nery Rev Enferm 1999; 3(2):97-106.
  • 6. Pagliuca LMF, Costa EM, Costa NM, Souza KM. Desenvolvendo tecnologia para prevenção e tratamento de emergências domésticas para cegos. Rev Bras Enferm 1996; 48(1):83-4.
  • 7. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências [on line] [ Acesso 2007 fev 13]. Disponível em:
  • 8. Macedo KNF, Pagliuca LMF. Características da comunicação interpessoal entre profissionais de saúde e deficientes visuais. Rev Paul Enferm 2005; 23(3/4):221-6
  • 9. Pagliuca LMF. A arte da comunicação na ponta dos dedos - a pessoa cega. Rev Latino-am Enfermagem 1996 abril; 4 (n. especial):127-37.
  • 10. Fonseca V. Educação especial. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.

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