domingo, 22 de novembro de 2015




O défice visual traduz-se numa redução da quantidade de informação que o indivíduo recebe do meio ambiente, ficando assim restrita a quantidade de estímulos adquiridos. No entanto, este défice não origina necessariamente problemas no desenvolvimento psicológico (Martin & Bueno, 1997). Na verdade, o indivíduo dispõe de outras vias de recolha de informação que podem complementar ou substituir a via visual, com a adequada orientação e apoio. A investigação refere um conjunto de comportamentos que podem caracterizar estes indivíduos, contudo é mais correcto o uso do termo “tendências”, pois nem todos os cegos apresentam os mesmos traços psicológicos na sua estrutura de personalidade.
O bebé cego, tal como o bebé normovisual, a partir da actividade reflexa inata (comportamento natural não aprendido), começa a organizar tipos ou sequências de acção, à excepção das referentes ao sentido da visão, verificando-se algumas diferenças nítidas na sua evolução, a partir dos quatro ou cinco meses.
Segundo Fraiberg (1977) e Sonksen (1979, cit. por Dias, 1995), a coordenação auditivo-manual processa-se no bebé cego, entre os oito e os dez meses, o que significa um atraso considerável em relação ao bebé normovisual. Todavia, é necessário salientar que enquanto a coordenação visuo-manual levanta um problema de ordem sensório-perceptiva simples (ou seja, o bebé normovisual olha para um objecto e tem logo acesso às características visíveis e aos sons produzidos pelo mesmo), a coordenação auditivo-manual só é possível quando os sons produzidos pelos objectos começam a possuir um significado, ou seja, quando o bebé cego é capaz de atribuir a cada som um objecto exterior. A reacção auditivo-manual torna-se possível quando o bebé cego começa a ser capaz de fazer, por exemplo, a distinção entre o som de um trovão e o som de um brinquedo. Este tem de perceber que o brinquedo pode ser manuseável, palpável e que num trovão não pode tocar.
Relativamente ao desenvolvimento motor, a visão desempenha um papel crucial que a audição só poderá suprir parcialmente e a partir dos dez meses, embora o desenvolvimento postural seja semelhante ao da criança normovisual (Dias, 1995).
O bebé cego consegue sentar-se e manter-se de pé com a mesma idade que o bebé normovisual, contudo demonstra alguns atrasos significativos no que diz respeito ao estender as mãos, engatinhar e andar (Fraiberg et al., 1966, cit. por Santin & Simmons, 1977). Este atraso no que respeita aos movimentos é compreensível tendo em conta que o bebé cego tem de aprender a conhecer o ambiente de uma maneira diferente e precisa aprender a dirigir-se para um determinado estímulo, já minimizado, fornecido pela audição, para tentar explorar um mundo desconhecido e confuso.
A criança cega, segundo Adelson e Fraiberg (1977) e Scholl (1984, cit. por Dias, 1995), experimenta algumas dificuldades no engatinhar e no início da marcha, por falta de estímulos exteriores. A exploração activa ocorre apenas quando esta é capaz de se deslocar no sentido de descobrir o mundo exterior, estando este aspecto, mais uma vez, dependente da informação fornecida pela audição. Mesmo nos casos de crianças com atraso no desenvolvimento, as referências do desenvolvimento motor não têm uma ligação estrita com o desenvolvimento sensorial. Num caso extremo de restrição total da mobilidade, a criança normovisual é capaz de explorar e conhecer o ambiente, uma vez que o desenvolvimento sensorial prossegue sem a mobilidade. No entanto, para a criança cega, a mobilidade é extremamente necessária no estabelecimento de uma ligação primária com o mundo exterior. Caso esta não exista, o desenvolvimento auditivo e táctil está claramente comprometido. Estas crianças possuem pouca percepção da estrutura do espaço que as rodeia, até poderem movimentar-se no sentido de descobri-lo e explorá-lo.
Por volta dos onze/doze meses, o bebé cego apresenta pouca motivação para explorar um ambiente imprevisível, receando as suas consequências. As reacções naturais à imprevisibilidade, o retraimento, o medo e a desconfiança são factores que retardam a mobilidade e o comportamento exploratório (Santin & Simmons, 1977).
A realidade e o mundo que rodeiam a criança cega estão reduzidos ao espaço que o seu corpo ocupa e as suas referências do exterior reduzem-se aos sons e contactos corporais. É importante que esta tenha possibilidade de adquirir uma boa percepção do seu próprio corpo e do espaço, o mais cedo possível, para poder relacionar-se e intervir no seu meio. Assim, e em termos educativos, o principal objectivo deve ser a promoção da sua autonomia e independência, permitindo-lhe uma adequada inter-relação com o mundo (Simões, 1998).
A educação dos cegos deve, então, valer-se de técnicas e recursos de orientação e mobilidade, de forma a estimular a criança na exploração do mundo facilitando, desta feita, a sua mobilidade (Wegner, 1983).
Os programas de educação e reabilitação de pessoas cegas devem contemplar um treino intenso do uso da bengala que, segundo Hoover (cit. por Wegner, 1983), deve funcionar como uma extensão do tacto, de forma a testar o terreno para o próximo passo e dar mais confiança ao seu utilizador.
Para além destes aspectos, é necessária uma preparação psicológica quer da criança, quer da família e da escola. A utilização da bengala branca vai diferenciar a criança aos olhos dos outros, identificá-la como diferente, fazê-la sair do anonimato, funcionando como reconhecimento do estatuto de pessoa cega, o que coloca o problema da aceitação da deficiência e da atitude tomada face à realidade (Dias, 1995).
No que diz respeito à aquisição da linguagem, o bebé cego evolui de modo semelhante ao bebé normovisual, podendo verificar-se atrasos essencialmente devido à pobreza de experiências, ou seja, à falta de estimulação (Dias, 1995). Como referido, estas crianças permanecem, por vezes, mais tempo em algumas etapas do desenvolvimento. Sendo assim, é importante recorrer a uma maior estimulação dos outros sentidos (audição, tacto, olfacto e paladar).
Se a criança aprender, a partir de experiências vividas e reais acompanhadas de uma explicação oral, a distinguir melhor os sons, os cheiros e as texturas, relacionando-as entre si, o seu conhecimento global do mundo ficará muito mais enriquecido (Simões, 1998).
Relativamente à socialização, refira-se que este processo na criança cega é, por norma, mais complexo que na criança normovisual. Embora a primeira percorra as mesmas etapas, pode ser seriamente afectada, não por factores intrínsecos à cegueira, mas por motivos extrínsecos, como a própria sociedade (existência de estereótipos, preconceitos e principalmente de falta de informação), o que pode constituir um grande obstáculo à sua plena inclusão.
Tendo em conta esta realidade, importa abordar o problema da valorização pessoal e da auto-imagem. Esta última é o conjunto de todos os elementos da personalidade que cada um considera e percebe como seus, dependendo em parte das experiências anteriores e da imagem que os outros reflectem de nós. Assim, os indivíduos consideram-se capazes ou incapazes quer na medida em que os outros os percepcionam, quer na medida em que ao agir, tomam consciência da sua eficácia ou ineficácia (Dias, 1995).
Parece evidente que o conceito que o cego constrói de si próprio varia de acordo com as vivências e experiências a que teve oportunidade de aceder, pelo que se torna determinante reportarmo-nos à relação mãe/bebé cego. A imagem que a criança cega tem de si própria vai depender desde logo da riqueza vivida no interior da díade (Dias, 1995).
Em geral, quando uma criança nasce cega, não encontra a receptividade que seria de esperar por parte da família, quando comparada à criança normovisual. Quando, nos primeiros dias ou meses de vida, a cegueira da criança é percebida ocorre frequentemente uma ruptura ou comprometimento do vínculo afectivo que sustenta a relação mãe/filho (Rodrigues & Macário, s/d). Verifica-se uma forte ansiedade por parte da família e, na maioria dos casos, a mãe não se sente disponível, de imediato, para estabelecer uma boa relação com o filho diferente do esperado. Se a mãe não conseguir ultrapassar esta situação e criar um clima de distância entre si e a criança cega, esta última começará a sentir-se desde logo rejeitada e construirá uma imagem negativa de si própria. Outro factor de risco surge quando o quadro de ansiedade dos pais se prolonga ao longo do desenvolvimento da criança, manifestando-se sobre a forma de uma protecção excessiva, com efeitos nefastos para a estruturação psicossocial da mesma.
Pelo contrário, se a família der à criança cega a possibilidade de viver num clima de segurança, carinho e proximidade, esta vai, provavelmente, construir desde cedo uma imagem positiva de si própria. Este é sem dúvida um factor fundamental de protecção ao seu desenvolvimento global, actuando em conjunto com outros de igual importância, tais como a promoção da autonomia e independência e a criação de um ambiente educativo propício ao desenvolvimento da criança cega.

Bibliografia
  • Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (s/d). [on-line]. Disponível no URL: www.acapo.pt/information.asp
  • Dias, M. (1995). Ver, Não Ver e Conviver. Livros SNR N.º 6. Lisboa: Secretariado Nacional Para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência.
  • Informações básicas sobre deficiência visual (s/d). [on-line] Disponível no URL: http://www.entreamigos.com.br/textos/defvisu/inbadev.htm
  • Martin, M. & Bueno, S. (1997). Necessidades educativas especiais. Capítulo XIV (Deficiência visual e acção educativa). (Trad. de Ana Escoval). Lisboa: Dinalivro.
  • Rodrigues, M. & Macário, N. (s/d). Estimulação Precoce: Sua Contribuição no Desenvolvimento Motor e Cognitivo da Criança Cega Congénita nos Dois Primeiros Anos de Vida. In Revista Benjamin Constant. Ano 8, n.º 21, pp. 15-16, Maio 2002. Rio de Janeiro.
  • Santin, S. & Simmons, J. (1977). Problems in the construction of reality in congenitally blind children. In Journal of Visual Impairment & Blindness, 71, pp. 425-453.
  • Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. (2002). Ajudas técnicas: benefícios para as pessoas com deficiência. Folhetos SNR n.º 49. Lisboa: SNR.
  • Simões, A. (1998). Crianças com Deficiência Visual. Cadernos de Educação de Infância n.º 47/98. Lisboa: APEI.
  • Wegner, S. (1983). Curso de Especialização de Professores na área da Deficiência Visual. Instituto Benjamin Constante.



Desenvolvimento Sócio-cognitivo das Crianças com Deficiência Visual: Uma Perspectiva
autores: Ivo Henriques - Centro de Actividades Ocupacionais de Câmara de Lobos & Susana Spínola - Serviço Técnico de Educação para a Deficiência Auditiva
in Revista Diversidades n.º 23 - Ano 6
Janeiro, Fevereiro e Março de 2009

fonte: http://www02.madeira-edu.pt/



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