Pedro Viana deixou de comer sozinho. Um tormento, as primeiras semanas de confinamento. Não conhecia dias assim. Não percebia por que não havia de sair de casa, de ir ao centro de atividades ocupacionais, de abraçar e beijar quem gosta. Está melhor, mas não voltou a comer sozinho. Comer era a única coisa que o rapaz, de 24 anos, fazia sozinho. “Vamos lá ver se quando isto passar ele volta a comer sozinho!”, exclama a mãe, Rosário Viana.
Desde o dia 16 de Março, além das escolas, fecharam os centros de atividades ocupacionais (CAO), os centros de atendimento, acompanhamento e reabilitação social (CAARS) e outros serviços para crianças e adultos com deficiência. As equipas de Sistema Nacional de Intervenção Precoce deixaram de ir às casas, escolas e instituições, passaram a regime de teletrabalho. Mantiveram-se os lares, as residências autónomas, o serviço domiciliário.
“As crises são sempre desiguais nos seus efeitos”, sublinha a coordenadora do Observatório da Deficiência e dos Direitos Humanos, Paula Campos Pinto. E esta, provocada pela pandemia de covid-19, não é diferente. Para lá de tudo o que fechou, há reajustes no serviço domiciliário e no apoio à vida independente. “Há pessoas que estão a ser privadas disso”, lamenta. Sobra para quem está em casa, o que não é bom. “Quando o cuidador está isolado e em sobrecarga excessiva, há um potencial risco de abuso, de violência, de negligencia.”
Aliviar a carga das famílias
Para aliviar as famílias, um pouco por todo o país, organizações procuram redirecionar parte dos serviços que prestavam para dentro de cada casa. Há muitos aspetos para acautelar, a começar pelos mais básicos já que a pobreza está mais presente. “Temos famílias em que a alimentação das pessoas com deficiência é garantida no CAO. Com os filhos em casa, a alimentação não chega para toda a gente”, conta Rogério Cação, vice-presidente da Federação Nacional de Cooperativas de Solidariedade Social. Há que fazer-lha chegar.
Pedro é utente da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) do Porto. “Temos uma equipa técnica muito grande que está em contacto telefónico com as famílias, para ver o que precisam, para lhes dar orientações sobre o que poderão fazer em casa”, afiança a directora, Teresa Guimarães. “Pode ser muito pesado. Temos pessoas com grande nível de dependência. Temos mães sozinhas que vão entrar numa fase de desgaste grande. Estamos preparados para prestar apoio domiciliário, a nível da higiene e da alimentação, mas é preciso que as famílias queiram. E muitas não querem. Têm medo que o vírus lhes entre pela porta dentro.” A mãe de Pedro foi uma delas.
Quando o mundo não andava torto, Rosário levava Pedro para a CAO ao princípio da manhã e ia buscá-lo ao final da tarde. Aproveitava para tratar da casa dela e de casas alheias. Agora, aquele T2+1 é o mundo quase todo. O que lhe pesa não é o trabalho, embora o filho mais velho – com síndrome de Wolf-Hirschhorn, uma doença raríssima que lhe provoca um forte défice – precise dela para tudo. Afinal, deixou de ter casas alheias para limpar. O que lhe pesa é a necessidade de atenção permanente. “Está sempre em cima de mim. Tenho de ir falando com ele.” Só tem descanso quando o filho mais novo, estudante universitário, entretém o irmão. Mesmo assim, prefere não ter ninguém em casa esta viúva de 62 anos. “No início, estava muito cansada porque ele não comia, dormia mal, andava agitado, agressivo. Já está melhor.”
Deu-lhe umas gotas homeopáticas para domar a ansiedade e inventou-lhe uma nova rotina. Estratégia acertada, parece-lhe. “Agora, está na hora do pequeno-almoço. Vai buscar isto, vai buscar aquilo. Agora, está na hora de passear o cão. Vamos dar esta voltinha com o Marley. Agora, está na hora de ouvir música. Dando-lhe o tablet, ele consegue mexer. Agora está na hora de ver um jogo de futebol. É a única coisa que ele gosta de ver na televisão. Agora, está na hora de telefonar às pessoas de que mais gostas. Ele gosta muito da família.”
A eventual falta de ventiladores
Um medo paira sob incontáveis famílias de pessoas com deficiência intelectual. O medo de que se chegue a um ponto de os ventilares não serem suficientes para todos e de haver quem ache que a vida daquela pessoa vale menos, aponta Paula Campos Pinto. É um medo indizível, sublinha Helena Albuquerque, presidente da Humanitas – Federação Portuguesa para a Saúde Mental.
Joana Morais e Castro, mãe de uma menina de seis anos, admite esse medo. A semana passada, apanhou um susto. A filha ficou com febre e dores de garganta. “Ligámos para a linha Saúde 24. Houve ótimo atendimento do ponto de vista humano, mas percebemos que não há orientações específicas para pessoas com Síndrome de Down.” Naquela inquietação, falou com outros membros da Associação de Pais 21 e tentou “perceber quais as directrizes ético-médicas em Portugal”.
Viram todos as notícias vindas dos Estados Unidos. O Estado do Alabama decidiu que as pessoas com deficiência intelectual grave são candidatas improváveis aos ventiladores. Viram todos as notícias vindas de Itália e Espanha, onde os médicos já tiveram de escolher. “Acreditamos que isto não vai acontecer em Portugal, mas temos aquele receio”, revela. “As pessoas com deficiência não podem ser discriminadas. Os critérios terão de ser clínicos.”
Prevenção é a palavra de ordem.“As pessoas com Síndrome de Down têm o sistema imunitário mais frágil”, frisa. Antes ainda de o Governo decretar o encerramento das escolas, já a jurista, de 41 anos, se tinha fechado no seu T4 com a sua família. Joana está com uma baixa de apoio à filha, que frequenta o pré-escolar. O marido, gestor de empresas, está em regime de teletrabalho. E os quatro filhos embrenhados em afazeres e brincadeiras.
Riscos e regressão
Multiplicam-se as estratégias das equipas técnicas articuladas com as famílias confinadas. A Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas de Peniche, por exemplo, procura dinamizar grupos de trabalho através das redes sociais. Esta semana, conta Rogério Cação, propuseram que cada um “documentasse a sua janela”. “Podiam enviar uma fotografia ou um registo de voz. “Têm tido uma atitude muito colaborante.”
Já está decidido que, depois da Páscoa, os estudantes até ao 10º devem continuar na modalidade de ensino à distância. “Estas crianças precisam em muitos casos de apoio especializado”, salienta Paula Campos Pinto. “Se os professores já têm dificuldade, que dirão os pais? Estas plataformas são todas acessíveis a pessoas que têm baixa visão ou são cegas? São dúvidas que temos.” Ao que disse esta quinta-feira o primeiro-ministro, António Costa, o Ministério da Educação está a ultimar um plano específico para crianças com necessidades especiais.
“Agora, temos uma situação. Depois, vamos ter de trabalhar toda a compensação deste período”, torna Cação. “Se calhar vai ser mais difícil o [período] pós-covid do que o covid. Vamos ter as famílias descompensadas e as pessoas com deficiência também descompensadas pelo isolamento e pela quebra de rotinas e, se calhar, com regressões ao nível de aprendizagens.”
Em casa de Joana, a família é grande e entrou toda em campo. “Estamos a apostar muito na terapia de intervenção precoce para que ela seja autónoma, realizada, feliz. Há um risco de retrocesso quando as pessoas com deficiência [intelectual] não estão activas. Estamos a tentar mantê-la ativa com terapias e desafios à distância.” Quer a educadora, quer a terapeuta mandam exercícios diários e semanais.
Na casa da família de Bernardo Diniz também todos se esforçam. O rapaz, de dez anos, está a aprender a andar. Os pais e os irmãos tentam encorajá-lo a andar, a mexer-se, a fazer exercício. “Nós conseguimos fazer uma parte do trabalho da fisioterapeuta, mas não todo. Ele pode regredir. As aprendizagens não estão consolidadas”, diz a mãe, Maria do Carmo.
Mal foram anunciadas as ordens de distanciamento social e confinamento, a bióloga e o marido, economista, pegaram nos cinco filhos, viraram costas à casa que habitam em Lisboa e instalaram-se na casa de férias, no Alentejo. Bernardo tem microcefalia. Não vê, não fala, não lava as mãos sozinho, não percebe que tem de tossir ou espirrar para o braço ou cotovelo ou lenço de papel descartável. “Era mais fácil ficar contaminado em Lisboa. No caso de ficar contaminado, a evolução da doença seria mais perigosa”, explica a mãe.
Por lá devem continuar até tudo ficar mais controlado, mas Maria do Carmo não está totalmente descansada. “Estamos a uma hora de um hospital.” Bernardo sofre de epilepsia. Uma ou duas vezes por ano, tem um ataque que exige ida ao hospital. “Assumimos este risco falando com a neurologista e trazendo os remédios SOS necessários, caso venha a ser preciso. Se tiver que ir para o hospital, não sabemos muito bem como vai ser.” Avaliando os riscos da contrair covid-19 e os riscos de ter uma crise de epilepsia, a primeira pareceu-lhe mais provável. Às vezes, a vida obriga a escolher entre o mau e o péssimo.
Fonte: Público
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