segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

«Ninguém é melhor do que nós. A deficiência não é uma fatalidade.»

«Há os que lutam um dia e são bons, há os que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam a vida toda e esses são os imprescindíveis.» O poema de Bertolt Brecht foi inspiração para Nitucha Sousa, sempre em luta para conseguir oportunidades iguais para gente portadora de deficiência (como ela). Depois das escolas, o projeto que criou, Imprescindíveis em Ação, chega agora às empresas para mostrar como se trabalha a sério.


À noite, quando se permite parar, acontece a Nitucha Beatriz Sousa ficar muitas vezes em silêncio à janela. Devia estar cansada das frustrações, pensa a jovem animadora sociocultural de 28 anos, com setenta por cento de incapacidade motora. Cansada de levar pontapés por ter paralisia cerebral e o mundo aceitar mal as diferenças.


Ainda assim, não desejava estar noutro lugar. E hoje até foi um bom dia, agora que começou finalmente a ir às empresas promover a inclusão social e a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para os portadores de deficiência. Ninguém segura o furacão Nitucha.


«Por muito que a minha vida seja bem mais do que a paralisia cerebral, houve um tempo em que me senti diminuída e inútil. Não me achava essencial, isso estava a definir‑me aos poucos. Considerava‑me um estorvo», diz a jovem empreendedora, familiarizada com o sentimento genérico de exclusão a que nunca se resignou.


Em 2015, terminado o curso de Animação Sociocultural no IDS – Instituto para o Desenvolvimento Social, em Lisboa, foi procurar emprego. Bateram‑lhe com porta atrás de porta na cara. A violência do embate foi de tal ordem que daria para derrubar um touro. A ela, deu‑lho e fúrias para ir à luta. Chegava de revolta a consumi‑la por dentro.


«Foi quando agarrei no trabalho que desenvolvi no meu último ano de curso e criei o projeto Imprescindíveis em Ação, com que concorri a um financiamento da Associação Salvador em 2016», conta Nitucha. De 65 candidaturas apresentadas, 23 saíram vencedoras e a dividir um prémio de cem mil euros entre elas. Uma delas era a sua.


«A missão consistia em desenvolver ações de sensibilização para a temática da deficiência em escolas, prisões, empresas.» Nunca na perspetiva do coitadinho – penas têm as aves –, mas de anunciar à sociedade que cada um encerra o seu potencial próprio, sem exceção. «Não queria que mais pessoas na minha posição passassem pelo mesmo.»


Pelo contrário, precisava de lhes mostrar que fazem falta. Dizer a todas que são fundamentais, no sentido preconizado pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht. «Ninguém faz o que quer que seja melhor do que nós, a deficiência não é uma fatalidade. Temos capacidades. Podemos estudar, trabalhar e realizar‑nos como qualquer um.»


O que nos traz de volta à igualdade de oportunidades no mercado de trabalho e ao dia – 26 de janeiro, uma estreia absoluta – em que Nitucha levou a Associação Imprescindíveis em Ação aos escritórios de Lisboa da Hi Portugal, empresa de transfers e tours turísticos.


«No meu caso é diferente, porque também tirei Animação no IDS, tenho as bases do social. Mas creio que a maioria de nós não está preparada para lidar com a deficiência, nem sequer está para aí virada», observa João Piedade, um dos responsáveis.


Tudo isto lhe mexe com os nervos: como é possível, por exemplo, alguém reparar num invisual a tentar atravessar uma estrada movimentada sem lhe dar a mão? Somos os piores cegos por não querermos ver.


«Passamos a vida fechados na nossa bolha, sempre com problemas mais importantes do que os dos outros. Acho que as pessoas precisam de lidar com um caso concreto para se interessarem», sublinha o manager da firma de transporte turístico, confiante de serem estas experiências de proximidade as que mais inspiram a mudança.


No que lhe diz respeito, não tem dúvidas de que ter conhecido a Nitucha lhe foi mais útil a ele do que a ela. «Se não soubermos o que se passa à nossa volta até podemos não ter problemas, mas também não vamos detetar oportunidades nem saberemos descobrir soluções», sublinha João Piedade, adepto da máxima que diz que parar é morrer.


Daqui em diante, à medida que esta etapa junto das empresas for ganhando forma, a ideia da Associação Imprescindíveis em Ação é colocar os trabalhadores no papel de funcionários com necessidades especiais, como têm vindo a fazer nas prisões e escolas um pouco por todo o país.


Se for preciso vendá‑los, tolher‑lhes um pouco os movimentos, pois que seja: só assim chegarão ao final do dia cientes de que todos puderam desempenhar a respetiva função, apesar das limitações a que estiveram sujeitos. Mais importante: tê‑lo‑ão feito ultrapassando as inevitáveis barreiras nascidas do preconceito.


«Eu própria tenho consciência de que cruzar‑me com estas pessoas mudou a minha vida», reconhece Nitucha, que desde abril de 2016 já falou para trinta turmas em escolas da Grande Lisboa e correu sete estabelecimentos prisionais e centros tutelares educativos na capital.


Tem sido oradora em seminários e conferências no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa), Universidade Fernando Pessoa (no Porto), Escola Superior de Saúde de Santa Maria (também no Porto), Instituto Politécnico de Castelo Branco e Universidade do Algarve (UAlg).


Agora, além de alargar a sensibilização às empresas, quer ainda fazer acompanhamento personalizado a quem mais precisa. «Um recluso do Estabelecimento Prisional de Caxias disse‑me que a prisão, afinal, não é a pior das limitações», diz Nitucha. «Mesmo em reclusão vai lutar pelos seus sonhos. E essa é a minha mensagem: podemos ser tudo.»


Ter uma «uma mãe sensacional» ajudou‑a a cortar o medo de uma machadada. «A pouco e pouco deu‑me assistência para eu mexer no fogão, passar a ferro, ser independente.»


Quando há coisa de 13 anos os pais foram para Angola tentar melhor vida e ela ficou com os irmãos – duas raparigas mais velhas de 33 e 31 anos, uma mais nova de 25 e o irmão com 30 –, continuou a tratar da casa como se nada fosse.


«Muita gente diz que não gosta de viver sozinha… eu cá adoro!», ri‑se a mentora do Imprescindíveis em Ação, decidida a levar avante a sua associação, custe o que custar. Uma a uma, as irmãs partiram para Angola, para junto dos pais; o irmão está a viver na Holanda.


Ela escolheu ficar. «Ir de novo morar com os meus pais, confortável mas dependente, seria um retrocesso quando o que eu quero é andar para a frente», justifica.


Ainda há muito caminho a percorrer no sentido da inclusão social. A sociedade precisa de Nitucha. «Os problemas existem, claro que sim. Só não podemos deixar que nos limitem mais do que as nossas limitações.»


DO PIOR DOS MEDOS À MELHOR DAS REVOLTAS


Parece‑lhe que já perdeu a conta às pancadas dolorosas, mas se tivesse de eleger apenas uma seria aquela. A mais violenta de todas. A pior. «Acabei o curso em 2015 e consegui entrevista numa empresa de distribuição de publicidade», conta Nitucha, incapaz de esquecer.


Ia esperançada – precisava muito do trabalho para se orientar com os irmãos. Não supunha que a deixassem quarenta minutos à espera sem a olharem nos olhos uma vez que fosse.


«Quando o responsável apareceu, limitou‑se a dizer que não me contratava. Perguntei porquê, se não me conhecia. Propus‑lhe trabalhar uma semana de graça, só para mostrar as minhas capacidades, e ele respondeu que não o faria por eu ser assim, uma vergonha para a empresa.» Foi a gota de água que fez transbordar.


No espaço de um ano, Nitucha criou o Imprescindíveis em Ação, conseguiu financiamento, viu chover solicitações e transformou o que era um projeto escolar na Associação Imprescindíveis em Ação (AIA), de modo a conseguir estruturar as respostas. A equipa cresceu entretanto para sete pessoas, entre as quais Ruben Machado – professor dela no curso de Animação Sociocultural no IDS – e Tiago Matos, formado em Gestão pelo ISCTE e especialista em mentoria de projetos na área do mercado de trabalho.


No seu caso, a visão reduzida a dez por cento nunca foi entrave para nada, embora admita que a sociedade não está preparada para a deficiência. «As pessoas mostram-se muito sensíveis, criam personagens que ficam bem na televisão, mas na prática o preconceito mantém-se igual ao que era há uns anos», diz Tiago.


Ainda bem que Nitucha soube transformar o seu pior medo na melhor das revoltas.


Fonte: Notícias Magazine

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