terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Autonomia e flexibilidade: olhemos para a lua e não apenas para o dedo

O Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular (PAFC), que o Ministério da Educação está a incentivar as escolas a desenvolverem, e que já envolve mais de duzentas, coloca algumas questões que importa ponderar, sob pena de se poder estar a olhar fixamente para o dedo que aponta para a lua.


Uma questão central subjacente a este PAFC é esta: como se pode mudar séria e sustentadamente o modelo escolar dominante, dando por adquirido que essa mudança é inevitável, necessária e até urgente (esta é outra questão essencial, mas não para aqui). Ao criarmos novas dinâmicas de aprendizagem interdisciplinar, interligando saberes, competências e valores, ao criarmos oportunidades para os alunos aprenderem mais e melhor, com mais profundidade e com mais ligação ao real (aprendizagens que não irão esquecer no dia depois do teste e que se tornam inteligência pessoal e social), ao colocarmos os professores e os alunos a cooperar e a trabalhar em articulação curricular, ao reforçarmos a autonomia profissional dos professores e a autonomia dos alunos,… estamos a percorrer um caminho necessário, urgente, irrecusável.

Mas temos de ter a consciência de que, muito mais do que um projeto de autonomia curricular entre as disciplinas a, b e c, estamos a por de pé um outro modo de ensinar, de fazer aprender, de ser escola e de cidadania. Cada um de nós é pedreiro de uma catedral, é fundamental disso termos consciência, mas até isso não chega; temos de perceber também que esta catedral não está a ser erguida num terreno livre e limpo, está a ser construída dentro de uma outra catedral, velha e já desgastada, com mais de trezentos anos, aquela onde afinal trabalhamos, com as nossas rotinas instaladas e em quem os “fiéis” confiam, levando diariamente aos seus “ofícios” todos os cidadãos portugueses.

E este não é apenas um aspeto que temos de considerar, é tão-só o aspeto que mais temos de ter presente.

Proponho declinar a reflexão em cinco pontos.

1. Quando aplicamos, com conhecimento e rigor, novos modelos de ensino e aprendizagem, mais interdisciplinares, mais ligados aos contextos, mais envolventes dos alunos e dos professores, já muito testados em pequena escala, por todo o mundo, incluindo Portugal (por exemplo, nas escolas profissionais, nos chamados “projetos integradores”), é preciso fazê-lo munidos de um horizonte novo, da perspectiva e da convicção de que estamos mesmo a criar, em pequena escala, um outro modo de ensinar e aprender, modo esse que conhecemos e desejamos, e que o que estamos a fazer constitui um passo imprescindível para uma adequada formação das crianças e jovens de hoje. Estas e estes são pessoas que vão viver nos séculos XXI e XXII e não na escola e no tempo histórico em que nós crescemos e vivemos, os adultos de hoje.

Quem não está munido deste novo horizonte, fazendo a economia dos novos referenciais e de uma profunda compreensão dos desafios da atual cultura dominante, quem não se dota de um pensamento novo e do desenho de um nova organização escolar, substituindo-os pela “compra” de uma ou outra nova metodologia em voga, depressa poderá cair no caminho, devorado pelo monstro que parece dormir, mas apenas está comodamente instalado.

E para nos mantermos de olhos fixos neste horizonte e com os pés assentes na terra, fazendo o que tem de ser feito, precisamos de direções escolares esclarecidas e alinhadas com este mesmo horizonte e necessitamos de equipas de profissionais igualmente qualificadas, alinhadas e dotadas de uma base de estabilidade profissional que temos de ponderar e definir e, quem sabe, negociar com a tutela (dois terços? metade? um terço?).

Para construir uma catedral dentro de uma outra catedral, além deste novo horizonte bem esclarecido e partilhado, temos de definir um conjunto articulado de medidas que permitam fazer crescer a nova edificação e, assim, a velha deixe de poder contar com as colunas de sustentação, com os arcos e ogivas, com as janelas e vitrais, pela simples razão de que existem novas colunas, arcos e vitrais que tornam dispensáveis os anteriores e, a prazo (qual?), as antigas colunas, arcos e ogivas já lá não estão, a base que as sustinha desapareceu e cairão por desnecessidade. Pois em educação escolar o segredo é este: quem sustenta a nova catedral é quem sustentava a antiga catedral, porque a mudança estrutural que é preciso empreender é feita aqui, por nós, com os mesmos alunos, os mesmos professores, os mesmos pais, envoltos num novo horizonte e num novo sentido do trabalho escolar, com novos desenhos organizacionais e espaciais e com o alcance de melhores resultados escolares e educativos, em geral.

Em educação escolar as quatro rodas do automóvel mudam-se com ele movimento, não há alternativa.

Ao fim de uns anos (o foco no propósito e a persistência na ação são por isso mesmo decisivos), verificamos que a antiga catedral afinal já não existe, foi-se liofilizando e reduzindo a uma filigrana fina, como que assumindo que, sem seiva e sem vida interior, a catedral de outrora passou a ser apenas passado, história; a nova catedral, que nasceu de dentro para fora (com apoio do exterior, já veremos), é essa que vai sobreviver.

2. Para isso, a capacitação dos trabalhadores da catedral é tão fundamental; é preciso que mudem por fora, aplicando novos modos de desenvolver o trabalho escolar, mas é imprescindível que mudem por dentro, que as antigas rotinas sejam substituídas por outras, bem compreendidas, assimiladas e praticadas.

Tenho-me dado conta de que projetos interdisciplinares pré-construídos, novos horários de alunos e professores que implicam o trabalho em equipas pedagógicas e em projetos interdisciplinares, novos espaços físicos e novas salas de aula, com novas “aplicações” e novos equipamentos, são iniciativas, que desde que articuladas e coerentes, contando com orientadores seguros e competentes, podem propiciar trajetórias sustentadas de inovação, com adesão crescente dos professores e de todos os atores nelas envolvidos. E isso acontece, não por imposição, mas por uma revelação que vem da prática, através das evidências de que se aprende mais e melhor e que se cria um clima escolar potenciador de mais e melhor desenvolvimento de cada um.

Deixemos a velha escola entregue a si mesma, que ela segura-se bem. Entreguemo-nos de alma e coração à criação sustentada de uma nova escola. Quem ainda não aderiu de alma e coração a uma nova escola, não abandona, e ainda bem, as antigas/atuais seguranças e rotinas. Daí a necessidade imperiosa de se alcançar um novo horizonte partilhado e de se adquirir a capacidade diária de construir esse novo caminho.

3. Por isso não nos iludamos com discursos piedosos e bem intencionados. Amanhã de manhã tudo permanece na mesma, nas salas de aula, nas escolas, nas relações instituídas entre disciplinas, entre grupos e entre pessoas.

Precisamos de assegurar a sustentabilidade dos processos de mudança em curso, pois eles vão decorrer ao longo de vários anos e carecem de instrumentos adequados.

A autonomia é apenas um instrumento, não é uma finalidade. A flexibilidade curricular também não é mais que um instrumento de trabalho e de gestão curricular. Não fiquemos a olhar para o dedo. Esses instrumentos estão a servir que construção e de que nova catedral? Como é que eles estão alinhados no seio de uma estratégia de renovação pedagógica da minha escola e do meu AE, de que eu sou parte?

Ao lado desses dois instrumentos, estão muitos outros dados: o horizonte da mudança a operar, como já vimos, os objetivos concretos, as atividades prioritárias (definidas de modo participado), os recursos afetos e as ocasiões de auto e heteroavaliação previstas.

E sobre os recursos, temos de ser claros, vai ser preciso dinheiro. Porque mais rapidamente do que podemos imaginar vai ser necessário desencadear as tais mudanças estruturais, as que mudam as anteriores referências e os antigos procedimentos, alterações de espaços e aquisição de novos equipamentos, os tais que induzem e arrastam outras e mais profundas mudanças. E isso, a construção de colunas, janelas, ogivas e arcos da nova catedral também custa dinheiro e ele ou aparece na hora certa ou a intenção de renovação pedagógica não passará afinal disso mesmo, uma casinha de bonecas dentro da antiga catedral, defraudando ainda mais as escolas e os profissionais.

Por isso é também muito importante alargar a base política de apoio à renovação pedagógica em curso e que se pretende agora estender a todas as escolas, seja em termos de forças políticas seja em termos de parceiros sociais, com relevância para os pais. Estes são parte decisiva neste processo que se pretende alargar e aprofundar.

4. E finalmente, para alcançarmos esta sustentabilidade, importa assegurar que as mudanças que ocorrem sejam apropriadas pelas escolas e pelos professores, pelos pais e pelos alunos, em dinâmicas autónomas e fortes de cooperação e entreajuda.

Para que a antiga catedral seja reduzida a uma filigrana desvitalizada, é preciso que a pequena nova catedral conte com poderosos meios de apoio externos que forneçam a luz, o ar e a água, os recursos de que necessitam as novas plantas para vingarem e se fortalecerem.

A autonomia ou é responsabilidade ou não é.

Uma responsabilidade que é das escolas e dos atores sociais da educação, mas também é da administração educacional e dos governos.

A autonomia ou é organizada ou nunca será; a coragem e a ousadia das escolas e dos AE, que tanto devemos celebrar, ou é organizada, ou definhará.

A autonomia necessária é esta que resulta do trabalho das escolas em rede, da criação de amparos institucionais fortes, fora da esfera do Estado e em cooperação com o Estado/administração educacional, não é a autonomia que é vista sobretudo como uma benesse dos governos. Esta autonomia é ilusória e evapora-se com a mudança dos mesmos governos.

A renovação pedagógica que pode permanecer mais duradouramente é aquela que é construída fora dessa roda dentada, mas bem articulada em dinâmicas autónomas e seguras de entreajuda, longas no tempo, dedicadas e fiéis.

5. Vem pois a propósito refletirmos sobre a profundidade e o ritmo da mudança com especial cuidado. Tenho ouvido dizer: “vamos devagar”. Como diz a nossa cultura: devagar que temos pressa! Sim, não se constrói uma catedral nova dentro de uma catedral velha sem ser devagar. Mas o que é isso devagar? Não diz nada, é um encobrimento. Precisamos de esclarecer esta questão e enfrentá-la com determinação.

A preparação do “exército” de cada AE para a mudança – o tal horizonte já definido e partilhado e a tal capacitação interna – tem de ser intensa, focada, articulada e coerente. As mudanças devem contar com equipas internas que se capacitem e que as orientem, sob pena de não se internalizar nem o sonho nem a capacidade de conduzir os processos de melhoria.

Estamos a subir uma encosta íngreme e, se não temos velocidade e a carga adequada, vamos escorregar para trás, aos primeiros momentos de dificuldade. Como referi acima, após a reflexão, definição, aplicação experimental, avaliação e revisão, feitas com ritmo e alegria, é preciso partir para mudanças mais estruturais. Sem estas, o já alcançado vai ser subsumido pelas rotinas instaladas e pelo desejo (justíssimo) de segurança e esta só morará no passado, nas rotinas instaladas, por mais ineficazes que sejam.

O pior que nos pode acontecer é mesmo ficarmos a olhar para o dedo quando este aponta a lua. Ou seja, ficarmos presos no que é apenas instrumental, ficarmos presos na falta de apoio político e financeiro. Não é fácil. Mas é mesmo imperioso que se caminhe sustentadamente para se conseguir renovar a educação escolar. É o que está a acontecer por todo o mundo e é aquilo que os novos tempos e modos exigem de nós.

Com um novo horizonte bem definido, com um plano de trabalho e profissionais qualificados, inscritos em redes de entreajuda, organizemos a nossa ousadia de fazer o irrecusável e necessário, neste momento histórico. Este é o tempo favorável.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.

Joaquim Azevedo

Fonte: Pontos SJ

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