quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Viver cego atrás das grades

fonte: Observador



Afonso Monteiro, 36 anos, é invisual e cumpre uma pena de nove anos e três meses de cadeia por tráfico de droga, posse de arma ilegal e roubo com violência.
Como é ser cego e estar preso?

Já estava preso quando a luz se apagou. Foi isso mesmo, parecia uma luz a apagar-se para sempre, descreve Afonso Monteiro. Os últimos 10% de visão do olho direito fugiram-lhe e apagaram-lhe da memória imagens como as da cara da própria filha, ainda pequena. “Não conheço a cara dos meus filhos”, atira, na sala vazia de visitas, o recluso com o número 238 da cadeia de Vale de Judeus, em Alcoentre. A partir daquele momento, todos os dias, Afonso aprendeu a ser cego na prisão.

São quase 11h00. Foi preciso passar por um apertado procedimento de segurança à entrada da cadeia de Vale de Judeus e percorrer um caminho labiríntico, e silencioso, até chegar à fria sala de visitas. É aqui que, aos sábados e domingos, os reclusos de Vale de Judeus recebem por uma hora amigos e familiares. As paredes são brancas, com uma fina risca vermelha, e estão despidas. As cadeiras estão arrumadas por cima das mesas como se o seu uso fosse raro. Não existe um único quadro ou informação. Apenas a imagem do exterior através da janela gradeada.

Neste ambiente austero, ouve-se um leve som de uma bengala a tocar no chão. É a guia de Afonso Monteiro, 36 anos. Chega acompanhado do pai, também ele condenado e preso por tráfico de droga. O pai é retirado pelos guardas porque a autorização que a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais concedeu não permite que ele escute ou sequer participe na conversa. “Porta-te bem”, diz-lhe o pai, antes de abandonar a sala. Estamos sozinhos.

Afonso Monteiro está nervoso. Cumpre uma pena de nove anos e três meses de prisão por tráfico de droga e posse de uma arma proibida por lei, mas mesmo assim sente-se intimidado. Os seus passos são ainda curtos e inseguros. Quando está sem o pai sente que não tem chão e nem a bengala guia o salva. “Eu uso isto para não bater com a cabeça, mas o meu pai não gosta de ver-me com isto”. Sem ele, sente-se sempre numa sala às escuras.

Eu uso a bengala guia para não bater com a cabeça, mas o meu pai não gosta de ver-me com isto”, diz Afonso.

Ajudamo-lo a sentar-se e explicamos porque estamos ali. Como é cumprir uma pena de prisão completamente às escuras? Sem ver? As respostas começam por sair amiúde. Palavras meio gagas. Até que os nervos o libertam aos poucos. Recua ao ano do acidente, o de 2009. Estava na zona de Aveiro, para onde foi viver depois de uma infância passada em Coimbra, quando foi apanhado no meio de uma rixa entre ciganos. Alguém abriu fogo com uma caçadeira e os estilhaços do chumbo atingiram-no na cara e na vista. Chegou a ser operado mais que uma vez, mas a visão do lado esquerdo perdeu-se para sempre, enquanto a do lado direito ficou com 10% de capacidade. “Conseguia ver um pouco”, diz. O suficiente para manter alguma independência.

Afonso diz que naquele ano tinha sido pai de uma menina, que fará agora sete anos. Ainda guardou a imagem da última vez que lhe viu a face, tinha ela meses. Mas até essa memória se perdeu. Fugiu com a visão. O rapaz nasceu pouco mais de um ano depois. Já não lhe viu a cara. Hoje conhece-lhes apenas a voz, porque insiste em falar com eles frequentemente por telefone. Naquele ano, o do acidente, Afonso decidiu mudar-se com a família para Coimbra para “estar mais perto dos médicos”. Chegou a ter consultas semanais, na tentativa de recuperar a visão. Até que, em 2011, foi apanhado pela polícia num processo por tráfico de droga. E acabou preso. “Foi a 18 de maio”, recorda Afonso, que não deixou escapar as datas da memória.

Os registos criminais consultados pelo Observador não coincidem com o seu relato. Mas é frequente que assim seja. A versão dos reclusos raramente coincidem com o papel do tribunal. No papel apreciado pelo Tribunal de Execução de Penas — que avalia o comportamento do recluso na prisão — Afonso perdeu a visão durante um acidente de viação ocorrido em 2009. Dois anos depois seria detido por tráfico de droga e posse de arma proibida e, como já tinha antecedentes criminais, acabou em prisão preventiva à espera de julgamento. O juiz julgou-o dois anos depois e não foi condescendente com a sua incapacidade física. “Não quis saber de eu ser cego, condenou-me e pronto”, queixa-se Afonso.

A pena foi fixada em sete anos e seis meses de cadeia, mas em 2014 o tribunal somaria a esta pena duas outras que estavam suspensas e que tinham sido aplicadas anos antes a Afonso por apropriação e roubo com violência. A sentença total acabou por bater nos nove anos e três meses de cadeia. E terão sido estes antecedentes a levarem o juiz a ser inflexível.

Os mesmos registos mostram que foi em 1997, tinha Afonso 17 anos, que ele foi detido pela primeira vez por roubo e condução ilegal. Desta vez seria condenado e preso na cadeia de Leiria. “Aqui foi mais fácil estar na prisão, porque eu via e fazia tudo sozinho”. Nas palavras de Afonso, porém, as contas com a Justiça são outras. Estava já cego quando “alguém” lhe pôs uma coisa nas mãos “para entregar a uma pessoa”. “Não sabia que era droga. Eram umas gramas”, admite. E só percebeu que o tinham “tramado” quando foi detido. E já tinha sido arguido noutros processos? “Não. Só há muitos anos fui apanhado sem carta e cumpri pena na cadeia de Leiria”, insiste.

Afonso foi detido em 2011 e só foi transferido da cadeia de preventivos, em Aveiro, para a cadeia de Paços de Ferreira quando foi condenado. Foi aqui que as últimas imagens que conseguia captar através de um olho se perderam, deixando-o à mercê da gratidão de outros reclusos. “Tinha amigos que me ajudavam a ir ao balneário e ao refeitório.” Foram mais de três anos a viver de favores dentro da prisão. Favores que dificilmente podia pagar, até que pediu à Direção Geral dos Serviços Prisionais autorização para ser transferido para Vale de Judeus, onde o pai também cumpre uma pena por tráfico de droga e onde o poderia ajudar no dia-a-dia.

Tinha amigos que me ajudavam a ir ao balneário e ao refeitório”, diz Afonso.
A cadeia de Vale de Judeus é uma cadeia com classificação de segurança “Alta”, segundo a informação dos Serviços Prisionais, e com um elevado grau de complexidade de gestão. É que aqui estão presos reclusos que cumprem penas elevadas. Grande parte mais de seis anos de cadeia. Os reclusos têm celas individuais com casas de banho sem chuveiro. A direção da prisão abriu uma exceção e colocou na cela do pai de Afonso outra cama — permitindo a transferência. Os dois estão na Ala A da cadeia, maioritariamente ocupada por reclusos que trabalham e “se portam bem”, nas palavras de Afonso.

É naquele espaço, ali confinados, que todos os dias pai e filho tomam o pequeno-almoço. “O meu pai prepara café”, conta Afonso. Depois de tratar da sua higiene pessoal, o pai ajuda-o a chegar à escola e segue para as oficinas da prisão. A professora Marina, prossegue Afonso, conseguiu “arranjar um aparelho” para ele aprender a ler braille. “Antes do acidente sabia ler e escrever, depois esqueci tudo”, argumenta. “Por isso estou ainda no primeiro ano.” Além desta ocupação, Afonso foi destacado ainda para fazer as limpezas das salas de aulas. “Foi o melhor que me podiam ter arranjado”, confessa. Aqui consegue sentir-se útil e explorar o espaço usando os outros sentidos. “Era esse o nosso objetivo, que ele começasse a sentir-se mais autónomo. Até para segurança dele dentro da prisão, porque se acontece alguma coisa, uma briga entre reclusos por exemplo, como é que ele se salva?”, interroga ao Observador uma fonte prisional.

Contactado pelo Observador, o presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional, explica que estes casos são raros. Por uma questão de segurança, um recluso com mobilidade reduzida é sempre colocado nas enfermarias das prisões para poder ter acompanhamento permanente de uma equipa médica. Jorge Alves recorda o caso de uma reclusa da cadeia feminina de Santa Cruz do Bispo, que necessitava deslocar-se ao exterior de cadeira de rodas. “Foi preciso contratar uma auxiliar para acompanhá-la. Assim como foi necessário contratar um transporte adequado, porque as nossas carrinhas não têm condições para isso”, conta. A própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais desconhece quantos reclusos nas cadeias portuguesas sofrem de mobilidade reduzida e precisam de condições especiais. “Esta Direção Geral está, neste momento, a proceder ao levantamento do número de reclusos com necessidades especiais, sendo que, nos casos existentes, cada estabelecimento prisional procura encontrar as respostas adequadas às circunstâncias e às especificidades das pessoas”, responderam os serviços ao Observador.

Esta Direção Geral está, neste momento, a proceder ao levantamento do número de reclusos com necessidades especiais, sendo que nos casos existentes, cada estabelecimento prisional procura encontrar as respostas adequadas às circunstâncias e às especificidades das pessoas”, responderam os serviços ao Observador.

Afonso sabe que pode correr riscos na prisão por não ver. E que não passa 24 horas ao lado do pai para garantir que este veja por si e que o salvaguarde de tudo. Mas à medida que se adapta à vida sem visão, vai também apurando outros sentidos. Ouve melhor, por exemplo. E isso transtorna-o. Afonso não consegue descrever o espaço em que se encontra, se é grande ou pequeno, em que direção é a sua cela ou a escola. Mas consegue descrever a cadeia como um local com muito “barulho”.

A prisão tem capacidade para cerca de 500 reclusos. As paredes altas e os corredores profundos alimentam os ecos. E isso perturba. “Fico completamente descontrolado”, conta. Por isso pediu para não almoçar no refeitório nem estar presente entre grandes grupos. É o pai quem lhe traz o almoço todos os dias para a cela.

A rotina é sempre a mesma. Além dos períodos de aulas e de limpeza, Afonso diz que é livre para ir até ao terraço o tempo que quiser. Naquela manhã, apenas três reclusos circulavam à volta do grande pátio que separa a ala onde se encontram os serviços administrativos e a sala de visitas, da ala dos reclusos. Não são permitidas fotografias naquela zona por uma questão de segurança, advertem os guardas prisionais.

Afonso só fica fechado com o pai entre as 13 e as 14 horas e entre as 19h00 e as 8h00. Nesse período as celas são trancadas. “À noite oiço a televisão para me distrair. Gosto da telenovela. Só me deito pelas onze”. Vive assim, cada dia, sem nunca esperar pelo fim de semana, porque não tem visitas. “A minha família vem às vezes, de dois em dois meses, porque está longe. A minha mãe está presa em Tires, a minha mulher fugiu… Era ainda muito nova. Ainda esperou três anos, mas depois foi embora… Os meus filhos são pequenos. Mas tenho tios e primos”.

A minha família vem às vezes, de dois em dois meses, porque está longe”, diz Afonso.
Terá sido este o cenário que levou o juiz do Tribuna de Execução de Penas a recusar-lhe qualquer período de liberdade condicional depois da avaliação feita na metade da pena cumprida. Na verdade, Afonso está mais acompanhado na cadeia, onde está o pai, do que cá fora.

A reclusão torna-se ainda mais difícil porque nem sequer pode praticar Desporto. “Não posso fazer qualquer esforço físico, porque tenho a retina do olho descolada e fico a sentir-me mal”, justifica. Um problema que os médicos, segundo ele, lhe dizem poder ser corrigido com uma intervenção cirúrgica quando sair em liberdade. Afonso continua a ir às consultas a Coimbra, e a alimentar a esperança que um dia aquele olho lhe vá permitir voltar a ver. Até lá, conta o tempo que lhe falta da pena.

Não se importa de ser fotografado, desde que o ajudem a deslocar-se e a colocar-se na posição que pretenderem. A conversa termina e chamam-se os guardas, que vêm acompanhados do pai de Afonso. “Portou-se bem ele?”, pergunta o pai. E abandonam os dois a fria sala de visitas.


Texto de Sónia Simões, fotografia de Hugo Amaral.

 

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