sexta-feira, 1 de julho de 2016

CONTRIBUTOS PARA UM CONCEITO DE "BIBLIOTECA INCLUSIVA"


Cartaz “Diversidad e Integración. Hacia nuevos modos de ver y ser” - Biblioteca Central da Universidade Nacional de Cuyo (Argentina), 2010
Cartaz “Diversidad e Integración. Hacia nuevos modos de ver y ser”
Biblioteca Central da Universidade Nacional de Cuyo (Argentina)


RESUMO  Num contexto de “inclusão da diferença”, pretendemos lançar a discussão sobre a melhor forma de actuação com vista à inclusão de pessoas com necessidades especiais, especialmente pessoas com deficiência visual, no circuito normal de leitura. Nesta linha propomo-nos abordar e debater o conceito de “Biblioteca Inclusiva”.

Muito se tem falado actualmente de inclusão: “infoinclusão”, “inclusão de alunos com necessidades educativas especiais em classes regulares”, “incluir a diferença”... Esta deve ser, sem dúvida, a direcção a tomar, para que o cidadão portador de qualquer tipo de deficiência, e o cidadão deficiente visual em particular, possa encontrar o seu espaço numa sociedade cada vez mais complexa.
A leitura e o acesso à informação são elementos da maior importância para a realização pessoal e profissional de qualquer indivíduo, bem como factores para o progresso de um país. É neste contexto, que nos parece oportuno abordar o conceito de “Biblioteca Inclusiva”, numa perspectiva de esclarecimento do seu significado.

OS DIFERENTES MODELOS DE BIBLIOTECAS
Partindo da observação da nossa realidade, bem como de estudos feitos no âmbito da União Europeia, dos quais destacamos o projecto “EXLIB – Expansion of European Library Systems for the Visually Disadvantaged” 1 , verificamos que existem vários modelos e diferentes formas de actuação no que toca ao acesso à informação e às bibliotecas por parte de pessoas com deficiência visual. Tendo presentes as conclusões deste projecto, verificamos que a leitura para este tipo especial de utilizadores tem já tradição em vários países europeus.
No contexto europeu, a leitura organiza-se, a partir de bibliotecas especiais de carácter nacional (National Library for the Blind – Inglaterra; Danmarks BlindenBibliotek – Dinamarca, etc), normalmente localizadas na capital do país ou numa grande cidade.
Estas bibliotecas, sendo também entidades produtoras, são responsáveis por organizar a produção, avaliar necessidades e facultar os meios para que os documentos cheguem aos leitores, respondendo às solicitações dos mesmos. O principal serviço é o de empréstimo, num modelo que, naturalmente, pelas suas características de Biblioteca Nacional, promove pouco a leitura presencial.
Numa tentativa de promover uma mais efectiva “inclusão” da pessoa com deficiência na rede de leitura utilizada pelos normovisuais, estas bibliotecas têm vindo a assumir, mais recentemente, outro tipo de funções como, por exemplo, a prestação de apoio aos técnicos de bibliotecas e o desenvolvimento do empréstimo inter-bibliotecas.

A EXPERIÊNCIA EM PORTUGAL
O modelo português segue, de perto, o modelo europeu, salvaguardando as devidas distâncias que as condições políticas, culturais e socio-económicas de Portugal impõem em relação aos restantes países da “União”.
O primeiro modelo a ser utilizado foi o das bibliotecas especiais, ou seja bibliotecas cujo acervo é constituído apenas por documentação em suporte especial, sobretudo o livro em Braille e o documento sonoro.
Estas bibliotecas são, simultaneamente, centros produtores deste tipo de documentação, tentando, desta forma, dar resposta às necessidades específicas dos seus leitores.
Este é dos modelos mais antigos, que visava dar resposta num contexto de carência absoluta, e onde a problemática da inclusão da diferença nem sequer era uma questão que se colocasse.
Progressivamente, o modelo anterior foi evoluindo, através da criação das chamadas Áreas de Leitura Especial que, embora partilhando o mesmo edifício, continuam a ser espaços específicos destinados a leitores com características especiais, cuja função é proporcionar todo o tipo de apoio que o leitor deficiente visual possa necessitar.

OS NOVOS PARADIGMAS
A tentativa de conjugação das virtudes que reconhecemos nos modelos instituidos com o funcionamento normal de uma biblioteca, faz-nos aproximar do conceito que queremos, hoje, aqui tratar a “biblioinclusão” – integração total do leitor com deficiência visual no circuito do utilizador, ausência de áreas especiais de leitura, desenvolvimento de procedimentos que conduzem à plena autonomia em termos de circulação e de utilização dos recursos oferecidos pela biblioteca.
É neste sentido que a Biblioteca Central da Faculdade de Letras do Porto, através do seu Serviço de Apoio ao Estudante Deficiente da UP, tem tentado desenvolver um conjunto de acções que promovam e facilitem a inclusão real e efectiva dos leitores com deficiência visual. Assim o leitor deficiente visual, ao utilizar a Biblioteca, terá que se submeter às mesmas regras e fazer rigorosamente os mesmos percursos do leitor normovisual, circulando livremente num edifício que constitui um excelente teste à eficácia do modelo que pretendemos instituir.
Num edifício labiríntico e, como é sabido, com algumas armadilhas, mesmo para os utilizadores normovisuais, a implementação da “Biblioteca inclusiva”, transformou-se num desafio quer para aqueles que, na biblioteca, têm a responsabilidade de gerir a área de apoio ao deficiente visual, quer para os utilizadores que terão que circular em espaços que não foram dimensionados nem tiveram em conta as especificidades de potenciais leitores com características especiais.
É neste contexto que se movimentam os leitores e a equipa dos serviços de apoio, actualmente constituída por quatro elementos dos quais três são deficientes visuais que, naturalmente, se integraram nos serviços da biblioteca, registando-se também aqui a aplicação prática e efectiva do conceito de “Inclusão”, com pleno sucesso quer ao nível profissional quer do ponto de vista psicológico, em termos de dinâmica de grupo e de relacionamento interpessoal no local de trabalho.

A UTILIZAÇÃO DOS SERVIÇOS
A utilização dos serviços da biblioteca por parte dos leitores deficientes visuais segue rigorosamente os mesmos critérios aplicados aos leitores normovisuais.
Numa fase inicial é feito um acompanhamento próximo e regular, até que estes leitores consigam atingir um grau de autonomia que lhes permita circular dentro da biblioteca sem a necessidade de sistematicamente recorrer à orientação dos funcionários.
Para além disso a Biblioteca disponibiliza um serviço de leitura aos utilizadores com deficiência visual em tudo semelhante ao serviço que presta aos leitores normovisuais que a ela recorrem, salvaguardando as adaptações necessárias que, obviamente, têm ser tidas em consideração dadas as necessidades particulares desse tipo de leitores.
A recepção – num primeiro contacto com a Biblioteca o leitor com deficiência visual, como qualquer outro leitor, dirigi-se à recepção da biblioteca onde é informado sobre serviços de que poderá usufruir, recursos tecnológicos à disposição, núcleos documentais disponíveis, gabinetes independentes instalados nas áreas de leitura em livre acesso, etc.
Tecnologias disponíveis – na sala de leitura, em gabinetes com equipamentos multimédia, o leitor deficiente visual pode utilizar um conjunto de recursos informáticos e tecnologias específicas que permitem ter acesso a um conjunto de serviços, nomeadamente: consulta do catálogo geral (OPAC) da biblioteca da Faculdade, acesso à Internet, consulta de textos digitalizados, consulta de índices ou de partes de obras a negro com o recurso ao scanner.
Leitura presencial e livre acesso – o leitor com deficiência visual dispõe, num Gabinete da sala de leitura, de um núcleo documental em Braille com cotas a negro e em Braille o que lhe permite utilizar este núcleo em livre acesso e efectuar a consulta ou leitura em qualquer local da sala de leitura, podendo igualmente solicitar o empréstimo para leitura domiciliária.
Neste contexto o leitor com deficência visual poderá ter acesso a praticamente todos os serviços disponíveis na biblioteca, com o benefício, do nosso ponto de vista muito importante, de poder mais facilmente estabelecer um contacto mais próximo e permanente com os outros leitores, estimulando a relação pessoal entre ambos.
O acesso a outro tipo de actividades que se desenvolvem na Biblioteca torna-se, simultaneamente, mais facilitado; é importante que a informação sobre exposições, colóquios, seminários, cursos chegue com a mesma facilidade a todo o tipo de utilizadores diversificando-se os meios de divulgação se tal for necessário. Ao longo dos cinco anos de existência do Serviço de Apoio ao Estudante Deficiente Visual temos vindo a implementar este modelo, enfrentando inúmeras resistências e, até mesmo, as nossas próprias dúvidas sobre se seria este o caminho mais indicado, o trilho certo para chegar ao destino.
Desbravar novos terrenos é avançar por tentativas, aprender humildemente com os erros, ultrapassar barreiras que, por vezes, parecem intransponíveis, sempre com uma intenção indomável e com um objectivo claro. Curiosamente, tivemos a oportunidade de constatar numa sondagem efectuada a diferentes bibliotecas com áreas de leitura especial, que o percurso que tem vindo a ser seguido, apresenta muitos pontos em comum com o modelo da Faculdade de Letras, apesar de não terem existido contactos entre as instituições em causa e os serviços da FLUP. Refirase como exemplo, entre outros, a Biblioteca António Botto – Biblioteca Municipal de Abrantes 2 , que apesar de adoptar procedimentos de funcionamento diferentes, segue de perto a ideia de de inclusão. Parece-nos ter sido um indicador claro de que estamos no bom caminho.

A IMPORTÂNCIA DA PARTILHA
Pretende-se com referência a estas experiências, tornar mais fácil a discussão e o entendimento do conceito de inclusão numa sociedade onde tudo parece complexo e intransponível. Na chamada “sociedade de informação”, não é compreensível que se mantenham barreiras que impedem os leitores deficientes visuais de aceder à informação. Temos que agarrar os meios disponíveis para superar os limitações impostas a estes leitores, mas é igualmente importante que se rompam barreiras num contexto de integração e não num contexto de “separação”, de “apartismo”. Dentro desta linha de pensamento a solução passará, inevitavelmente, pelo modelo por uma “Biblioteca Inclusiva”.

DEFINIÇÃO DO CONCEITO “BIBLIOTECA INCLUSIVA”
Como se poderá, então, definir o conceito de “Biblioteca Inclusiva” num contexto como o que acabamos de expor ? Deodato Guerreiro no seu artigo “A Biblioteca na interacção intelectosocial de todos os cidadãos” 3,define com alguma clareza aquilo que considera ser a escola inclusiva ideia que podemos, perfeitamente transpor para o plano das bibliotecas e do acesso à informação:
“Hoje a estratégia de intervenção é baseada no princípio da inclusão, cujo objectivo visa a construção de uma escola efectiva para todos, a chamada escola inclusiva que pretende proporcionar as mesmas oportunidades a todos, tornando a educação mais eficaz para todos. As bibliotecas têm que passar a assumir também esta dimensão.” Para que as bibliotecas passem a assumir também esta dimensão, parece-nos fundamental definir um conjunto de requisitos, para que qualquer biblioteca possa ser considerada inclusiva, os quais passamos a enumerar:

1. Cooperação inter-institucional:
A cooperação e intercâmbio entre bibliotecas ao nível da partilha de recursos informativos e documentais é um factor decisivo para a prestação de um serviço de qualidade ao leitor deficiente visual.

2. Técnicos informados:
Numa “biblioteca inclusiva” os técnicos deverão ter conhecimento pelo menos da existência de tecnologias especiais de digitalização e leitura, bem como do tipo de suportes, habitualmente, usados pelos leitores com deficiência visual para aceder aos documentos. Caso a biblioteca não disponha dos documentos solicitados os técnicos devem estar preparados para canalizar os leitores para as bibliotecas onde eventualmente existam.

3. Equipamentos e serviços:
Existência de equipamentos adaptados, e tecnologias específicas para acesso a catálogos em linha e para leitura da documentação material a negro, ao mesmo tempo que deverá estar disponível um serviço de atendimento de pedidos de leitura domiciliária para os utilizadores com mais dificuldade nas deslocações à biblioteca. O tratamento técnico do material em suporte especial deverá, igualmente, seguir os procedimentos adoptados para os outros tipos documentos existentes na biblioteca, devendo-se ter em conta a acessibilidade da pesquisa prevendo-se a existência de versões textuais dos catálogos em linha. O livre acesso poderá ser também uma opção para este tipo de leitores, desde que os documentos em suporte especial em livre acesso possam estar colocados num espaço dentro da biblioteca, devidamente identificado e facilmente localizável e se utilizem sistemas de cotação, simultaneamente a negro e em Braille de forma a facilitar o acesso quer aos utilizadores com deficiência visual quer aos utilizadores normovisuais. O alargamento dos serviços de empréstimo interbibliotecas à documentação em suportes especiais é outro factor importante para facilitar uma plena integração ao nível da utilização dos serviços prestados pela biblioteca.

4. Espaços:
Como já foi referido anteriormente os espaços onde se movimentam os leitores da biblioteca devem ser partilhados. A opção por áreas especiais de leitura para pessoas deficientes visuais vem, obviamente, agravar a situação de um determinado tipo de marginalização, que pretendemos irradicar dos serviços onde se movimentam estes utilizadores. A partilha de espaços significa também partilha de vivências, de experiências, de interacções, de entre-ajuda. E se isto é positivo e saudável para o cidadão comum tanto ou mais o será para o cidadão com deficiência. Ao propor-se um modelo em que, naturalmente se verificará um contacto entre o deficiente visual e o normovisual, está-se a promover uma forma de aprendizagem que fará com que todos aprendam a conviver com a diferença e, esta, ao tornar-se uma experiência “comum” do quotidiano, acabará mesmo por perder a característica de “ser diferente”.
Para concluir, queremos reafirmar que o que acabamos de expor constitui, apenas, um pequeno contributo para algo que está, ainda, em gestação e, portanto, com um longo caminho a percorrer até se atingir o objectivo proclamado pelo Manifesto da UNESCO sobre as Bibliotecas Públicas 4
 
“Os serviços da biblioteca pública devem ser oferecidos com base na igualdade de acesso para todos, sem distinção de idade, raça, sexo, religião, nacionalidade, língua ou condição social. Serviços e materiais específicos devem ser postos à disposição dos utilizadores que, por qualquer razão, não possam usar os serviços e os materiais correntes, como por exemplo minorias linguísticas, pessoas deficientes, hospitalizadas ou reclusas.”
Mas é importante saber que já estamos a caminho nessa direcção.
FIM
 

NOTAS:
  • 1  EXLIB - Expansion of European Library Systems for the Visually Disadvantaged: http://www.svb.ne/project/exlib/exlib_del.htm
    João Leite, Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e-mail: jleite@letras.up.pt
  • 3  “A Biblioteca na interacção intelectossocial de todos os cidadãos – algumas reflexões para a tornar inclusiva”, in Biblioteca, nº 5 e 6, Dezembro, 2000
  • 4  Manifesto da UNESCO sobre Bibliotecas Públicas, UNESCO, 1994

BIBLIOGRAFIA:
  • IFLA – Internacional Federation of Library Associations & Institutions. Section of Libraries of the Blind – “Guidelines for Library Service to Braille Users” (Ago. 1998)
  • GUERREIRO, Deodato - A Biblioteca na interacção intelectossocial de todos os cidadãos: algumas reflexões para a tornar inclusiva. “Biblioteca”, nº 5 e 6, (Dez. 2000), pp. 132-140
  • UNESCO - Manifesto da UNESCO sobre Bibliotecas Públicas, 1994, http://www.apbad.pt

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