quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

LITERACIA EMERGENTE PARA A CEGUEIRA


Criança deitada sobre um tapete vermelho lê um livro, com o seu coelhinho de peluche.

Tem cerca de 5 anos. Chega à biblioteca do seu jardim-de-infância para escolher um livro. Avança, no entusiasmo, de quem vai aprender, fantasiar e imaginar outros mundos, através de um recurso que os adultos dizem ser preciso. Depois de escolhido o “dito” livro, senta-se na manta de pernas à chinês. Está expectante…inquieto(a)… Pega-lhe, sente o seu cheiro, começa a saborear a fantasia, antecipando o que poderá surgir a cada folha… Abre-o…

Apercebe-se que o “dito” livro não passa de um amontoado de folhas em branco.

Hoje, dezenas de crianças com cegueira de idades precoces (0-6 anos), em todo o território nacional, têm um acesso muito restrito a um dos meios mais prodigiosos para a educação, cultura e desenvolvimento pessoal do ser humano: o livro. Se nos reportarmos ao impacto que o livro teve na nossa infância ou tem na vida das nossas crianças mais próximas (normovisuais), talvez, consigamos perceber o real impacto desta privação.

Enquanto serviço que presta apoio a crianças com cegueira, experienciamos uma grave lacuna ao nível dos recursos, para que estas crianças desenvolvam uma importante componente da alfabetização e de um desenvolvimento harmonioso – a literacia emergente.

1. A LEITURA DO MUNDO E A LEITURA DA PALAVRA
“A leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. (…) este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente” (Freire, 1989, p. 13).

Esta citação revela a ideia de um movimento bidirecional entre a experiência no mundo e a leitura, movimento bidirecional que os profissionais que trabalham com crianças com cegueira experimentam diariamente. No caso destas crianças, um dos grandes desafios que atravessam a prática educativa, prende-se com a forma como, a priori, se poderá facilitar o conhecimento do mundo através de outros canais sensoriais que não a visão. Os caminhos que nos levam às respostas são um desafio, que se acentua quando consideramos que captamos 80% a 90% de informação através da visão (Kastrup, Carijó & Almeida, 2009). Surge, assim, a necessidade da criança ter acesso a um conjunto de experiências significativas que lhe permitam viver e conhecer o mundo, através da mediação de outros sentidos, que podem igualmente produzir experiências ricas.

Criança sentada num bacio escuta uma história contada pela mãe.
Ilustração de Mariana Ruiz Johnson em “Mamã”

Mas não serão também os livros uma ferramenta de conhecimento para que as crianças sejam capazes de ler o mundo?

Yunes, na sua comunicação nos “Caminhos da Leitura”, em Junho de 2015, em Pombal, dizia que a linguagem literária abre horizontes, transportando possibilidades, ultrapassando o espaço, o tempo, outras vidas e culturas, sendo a dimensão poderosa da linguagem, capaz de nos trazer o que está no mundo: “À leitura corresponde tal alargamento de mundo, uma ampliação tão potente da linguagem, primeiro linguística e logo semiótica (pela transposição do modo de construção de significados e sentidos de uma esfera para outra), que ler passa à condição sine qua non para partilhar ideias e reflexões que, de alguma maneira, movem o universo humano” (Yunes, 2014, p. 130). A leitura é, assim, uma experiência de se ver o mundo e nos posicionarmos enquanto seres no mundo, nas palavras de Yunes: uma “espécie de upgrade da interpretação do estar no mundo para uma condição do ser no mundo” (Yunes, 2014, p. 131).

10 PRINCÍPIOS PARA LER EM VOZ ALTA
  1. Escolha o livro certo
  2. Faça da leitura uma tradição familiar
  3. Não tenha pressa
  4. Antes de ler cada página, descreva as imagens
  5. Narre a história com expressividade vocal
  6. Descreva e modele as expressões faciais com a linguagem corporal
  7. Faça perguntas simples que despoletem respostas e fomentem empatia
  8. Use objetos táteis enquanto lê – brinquedos, objetos de casa, materiais encontrados no exterior
  9. Deixe que a criança conte a história consigo
  10. Depois de ler a história, converse sobre a mesma com a criança.

Vulto de homem na posição de sentado (pintado de vermelho), vulto de criança a ler um livro ao seu colo (pintado de rosa). Do lado direito pode ler-se “pai sofá”.
Ilustração de Bernardo P. Carvalho em “Pê de pai”

2. “SEIS PONTOS A DANÇAR, CONTOS VÃO CONTAR”

Ponto de Honra nº1: Literacia como direito e como oportunidade para o sucesso das aprendizagens
Hoje é consensual que a literacia é um processo que se inicia desde o nascimento e que a oportunidade de construir uma base forte para a literacia é um direito de todas as crianças (Wright, 1991, p. xi). Acreditamos que práticas precoces no processo de leitura e escrita aumentarão o sucesso nas aprendizagens relacionadas com este domínio.

Ponto de Honra nº 2: A importância do contacto com a palavra escrita
“A criança motivada a ler irá exercitar as competências recém-adquiridas de leitura, lendo (ou tentando ler), às vezes compulsivamente, o impresso que a rodeia. Lendo mais, lerá melhor”.(Viana, Cruz & Cadime, 2014, p. 18)

Ponto de Honra nº 3: Encorajar para a leitura
Não basta ter livros, é preciso um trabalho de motivação para a leitura.
“É preciso que os adultos (nomeadamente pais, educadores e professores) apresentem os livros às crianças, os levem até elas, as incentivem a descobri-los”. (Viana, Cruz & Cadime, 2014, p. 18)
Ponto de Honra nº 4: Acesso e oportunidade
É crucial permitir que crianças com cegueira ou deficiência visual grave tenham formação/treino ao nível do uso de material tátil e oportunidades regulares para experimentá-los. (Theurel, Witt, Claudet, Hatwell & Gentaz, 2013)
Ponto de Honra nº5: Acessibilidade
Acreditamos que é importante criar livros adequados ao contexto percetivo da criança com cegueira. Acreditamos de igual forma, que isso significa procurar modelos de ilustração tátil que se afastem da cultura visual e se aproximem de experiências multissensoriais, propriocetivas e cinestésicas (modelo háptico). Trata-se da apropriação do objeto ilustrado de maneira sensorial, interativa e lúdica.
Valorizamos de igual forma, formatos alternativos para mediar histórias: áudio, caixa de histórias, jogos corporais, dramatização… Procuramos que o livro e, toda e qualquer forma de mediação de leitura, sejam uma janela para o mundo.


E para terminar…

Ponto de Honra nº6: Livros para Todos
Um livro deve ser apelativo, deve conquistar a atenção da criança e a sua vontade para o abrir e explorar. Procuramos, dentro do possível, que os livros que disponibilizamos sejam esteticamente apelativos para todas as crianças.
A negro e a braille, com ilustrações táteis e visuais, estes são livros para todas as crianças! Livros para ler com as mãos, com os olhos, mas principalmente com os 5 sentidos.

3. ESTRATÉGIAS E RECURSOS
O Nabo Gigante, um conto original russo, recolhido por Alexis Tolstoi no séc. XIX, tem os ingredientes de um conto popular verdadeiramente hilariante, acompanhando a aventura de um simpático casal de velhinhos, que se desdobram em esforços para colher um nabo… um nabo GIGANTE!


Elementos da Caixa de histórias

Este conto viajou até um jardim-de-infância da zona centro do país e as crianças adoraram. A adaptação contemplou:
  • Livro com texto em braille (optámos por colocar o braille em folha acetato sobre o texto do livro original);
  • Caixa de histórias (levámos connosco a velhinha, o carro de mão, os legumes da horta, as etiquetas dos legumes);
  • Dramatização (puxamos e içamos e sacudimos e puxamos com mais força. Mas o nabo continuava a não se mexer.)
  • Visita à horta (onde cruzamos fantasia e realidade).

    A caixa de histórias, a possibilidade de experimentar a história com o corpo (através da dramatização) e o contacto com a realidade, facilitaram a compreensão da narrativa e a construção de significados por parte da criança com cegueira.

Uma história cheia de cor do autor Miguel Borges Silva das Edições livro directo é um livro muito interessante para falar sobre a diferença. 
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Sinopse
Porque uma manhã, num tremor do pintor Vicente, provocado pela voz estridente do seu amigo Leonardo que o chamou para lanchar, nasceu uma mancha de tinta diferente. Não era amarela, nem magenta, nem azul, nem verde, nem violeta, nem vermelha-alaranjada! Era diferente! Muito diferente!


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