quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Ensino do Braille: Estratégias de Leitura

 

Blind Girl - Beatrice Offor - óleo sobre tela -1906/1917
Rapariga cega - Beatrice Offor - óleo sobre tela, 1906/1917

RESUMO | O presente estudo relata a importância do braille para a pessoa que perdeu a visão e como é significativa a leitura em seu processo de aprendizagem. Simultaneamente, apresenta a trajetória de uma profissional no ensino do braille. A falta de hábito de leitura é comum a grande parcela da população, incluindo-se as pessoas com deficiência visual. O Projeto Leitura nasceu de alguns estudos (resultados parciais apresentados em Simpósio) realizados em um centro de reabilitação, tendo se iniciado com dois aprendizes e, posteriormente, com os demais, que também optaram por aprender o braille. A partir desses estudos, começou-se a investir no acervo de livros em braille e a utilizar estratégias para ampliar o interesse pela leitura. Participaram do presente estudo todos os sujeitos com idades acima de 12 anos que fazem parte de um programa de reabilitação para aprendizagem do braille, entre os anos 2009 e 2015. Realizou-se um estudo de natureza qualitativa e foram utilizados registros de observação durante os atendimentos, relatórios sobre o processo de aprendizagem e de interação entre o pesquisador e o sujeito e discussão conjunta dos resultados obtidos nos atendimentos. Houve um crescimento no número de empréstimos de livros em braille no acervo do centro de reabilitação e melhoria na escrita dos aprendizes. As estratégias de leitura utilizadas foram devidamente aplicadas e tiveram êxito. Aprender a ler e escrever trouxe mudanças positivas na vida desses aprendizes. É importante criar políticas públicas para a produção de livros e materiais em braille.


INTRODUÇÃO
Segundo Cavallo e Chartier (1998), nos primeiros séculos da Roma Antiga, somente os ricos e os religiosos detinham o poder da escrita. De acordo com esses autores, a leitura em voz alta era a forma mais corriqueira de se ler. Os romanos utilizavam a leitura pública, e este teria sido um dos grandes recursos com caráter de vínculo social. Nos primeiros séculos do Império surge o novo leitor, aquele que lê por prazer, sendo alfabetizado e até instruído. Assim, começam a aparecer vários tipos de leitura, pois havia um público culto que lia grandes obras antigas e modernas, leitores mais instruídos e leitores pouco instruídos. Nessa época do Império, passa-se a difundir uma literatura para alfabetizados. Houve uma diferença na difusão de livros nas diversas camadas sociais, surgindo, então, o códice. Nos séculos V e VI, o códice tornou-se um livro para poucos, em virtude do aumento do analfabetismo.
É importante salientar que, apesar do analfabetismo, o livro foi difundido independentemente do número de leitores. O fato de o número de pessoas alfabetizadas ter diminuído consideravelmente – diminuindo, portanto, o número de leitores – não foi motivo para não surgir o livro. A demanda de leitura é que dita a diversidade das formas de leitura e de livros. Era um público diversificado, de acordo com sua origem social e a educação recebida, por isso suas escolhas e interesses por leituras eram diferentes.
Segundo Kleiman (2005), um mesmo texto possui diferentes leitores e diferentes modos de ler. Quando se muda o objetivo, mudam-se também as estratégias de leitura. Essa autora diz ainda que um mesmo sujeito pode ter diferentes práticas de leitura, bem como diferentes textos escritos, o que significa dizer que mesmo que o indivíduo domine a escrita, pode se deparar com a situação de incapacidade de produzir um texto.
A autora se refere às estratégias de leitura no que diz respeito à compreensão de textos e de interpretação. Segundo ela, deve haver um objetivo quando se lê um texto; portanto, a estratégia utilizada depende do objetivo. A leitura e a escrita são processos diferentes e não são fáceis de aprender; o caminho para o aprendizado é longo e pode ser lento.
No que se refere às estratégias de leitura, outra autora aponta que:
As estratégias de leituras são procedimentos e os procedimentos são conteúdos de ensino, então é preciso ensinar estratégias para a compreensão dos textos […] O que caracteriza a mentalidade estratégica é sua capacidade de representar e analisar os problemas e a flexibilidade para encontrar soluções. Por isso, ao ensinar estratégias de compreensão leitora, entre os alunos deve predominar a construção e o uso de procedimentos de tipo geral, que possam ser transferidos sem maiores dificuldades para situações de leitura múltiplas e variadas. (SOLÉ, 1998, p.70).
Para esta autora, as estratégias de leitura precisam ser ensinadas, assim o leitor tem condições de transferi-las para diversos tipos de leitura. Ainda segundo Solé (1998), devemos, obviamente, ensinar estratégias de leitura para ler. Nós, leitores, utilizamos as estratégias de maneira inconsciente. No entanto, quando encontramos algum obstáculo, abandonamos essa estratégia automática (cf. SOLÉ, 1998, p.71).
Ler e escrever são meios de comunicação e por isso são considerados uma prática social. A leitura é fundamental para o aprendizado da língua escrita, tanto para videntes 3 como para pessoas cegas. Por meio da leitura nós nos apropriamos de novos conhecimentos e ampliamos nossa visão de mundo. É na intersubjetividade que o indivíduo se constitui, e a leitura é uma atividade simbólica constitutiva do sujeito.
Nos rastros das ideias de Charmeux (2000), Caiado (2003) e Silva (1988), fica evidenciada a importância da leitura no processo de escolarização das pessoas. Por meio da leitura, servimo-nos da ortografia para compreender, ou seja, a leitura oralizada não é suficiente para a apropriação da ortografia.
O processo de aprendizagem da escrita, em braille ou alfabética, varia de uma idade para outra. Por exemplo: o processo de aprendizagem da língua escrita é completamente diferente para uma criança de 7 anos e um jovem de 18 anos, independentemente de serem cegos ou videntes. Da mesma forma, também é diferente o processo de leitura e de escrita. Quem lê bem não necessariamente escreve bem.
No caso da pessoa cega, a leitura e a escrita são possibilitadas por meio do Sistema Braille. Se a pessoa for cega congênita, será alfabetizada em braille; se tiver adquirido a cegueira na fase da adolescência ou na fase adulta, tendo sido alfabetizada por meio da letra em tinta, já conhecerá a função social da escrita e a aprendizagem do braille criará a possibilidade de continuar a ler. Os cegos também têm acesso à modalidade da leitura de tela – tecnologia assistiva. O leitor de tela é um recurso da informática que lê o que está na tela do computador. Todavia, embora a tecnologia tenha trazido muitas contribuições, ampliando para os cegos o material disponível para leitura, no caso da leitura pela audição não é possível aprender a ortografia, como também não é possível a identificação de gráficos, figuras geométricas e outras ilustrações. No caso das partituras musicais, por exemplo, uma pessoa cega só tem acesso por meio das partituras em braille. É relevante salientar também que, para a pessoa que gosta de ler, é uma satisfação, um prazer, ter um livro nas mãos. (MENDES, 2014b).
O Sistema Braille 4 é imprescindível para que as pessoas cegas tenham acesso à ortografia. Além disso, permite o acesso aos vestibulares, concursos públicos e eleições com independência e autonomia. A escrita braille promoveu uma revolução na vida das pessoas cegas, mas essa forma de escrita não é conhecida pela maioria das pessoas videntes, bem como há pessoas cegas que não leem/escrevem em braille.
Em pesquisa realizada em 2008 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), Retratos da leitura no Brasil (IPL, 2008), a pedido do Instituto Pró-Livro, 172,7 milhões de brasileiros foram indagados sobre o que preferiam fazer em seu tempo livre e a maioria da população optou por assistir à televisão (77%). A leitura foi a quinta opção citada pelos entrevistados (35%), atrás de hábitos como ouvir música, ouvir rádio e descansar. O resultado mostrou que 45% dos brasileiros não têm o hábito de ler. Dentre os motivos citados para não ler, a falta de tempo foi a razão mais apontada, com 29%; outros 28% não leem porque não são alfabetizados; e 27% não gostam ou não têm interesse (CIEGLINSKI, 2008). Outra pesquisa, divulgada em final de maio de 2015 pela Federação do Comércio (Fecomércio) do Rio de Janeiro, mostrou que 70% dos brasileiros não leram um livro sequer em 2014 (FOSTER, 2015).
Grande parcela da população não tem o hábito de ler, incluindo as pessoas com deficiência visual. Assim, fez-se uso de estratégias de leitura para os aprendizes do braille chegarem à leitura de livro. O acervo de livros em braille é de grande importância para os usuários com deficiência visual, pois, quando aprendem a ler, eles retiram livros por empréstimo e os levam para casa. É pertinente salientar que a ausência do hábito de ler não é exclusiva da pessoa com deficiência visual.

METODOLOGIA
Realizou-se um estudo de natureza qualitativa e foram utilizados registros de observação durante os atendimentos, relatórios sobre os processos de aprendizagem e de interação entre o pesquisador e o sujeito e discussão conjunta dos resultados obtidos nos atendimentos.
O caminho para a aprendizagem do braille iniciou-se pela memorização dos pontos; na sequência, praticou-se a leitura de palavras, frases, trechos pequenos e grandes e, finalmente, o livro.

As estratégias de leitura utilizadas foram:
1. leitura de textos no computador, de acordo com o interesse de cada um, e posterior impressão em braille;
2. leitura de livros infantis em braille para aprendizes com filhos pequenos, incentivando-os a ler para as crianças;
3. leitura de livros em braille indicados de acordo com o interesse de cada um e escolhidos por eles;
4. leitura de livro em braille indicado e aceito por todos para posterior discussão em grupo;
5. desconhecimento prévio de alguns sinais para o leitor identificar durante a leitura do livro;
6. letras eventualmente esquecidas no momento da leitura – principalmente as acentuadas – e leitura pelo contexto.

Participaram deste estudo todos os sujeitos com idades acima de 12 anos que faziam parte de um programa de reabilitação para aprendizagem do braille (Programa de Adolescentes e Adultos com Deficiência Visual), entre os anos 2009 e 2015, de um centro de reabilitação localizado no interior do estado de São Paulo.
Foi utilizado o acervo do centro de reabilitação, que possui livros em braille, como literatura estrangeira e nacional, literatura infantil estrangeira e livros técnicos. Também há livros falados nacionais e estrangeiros, livros falados infantis e livros em áudio da Coleção da Petrobrás, com títulos nacionais. No acervo também há livros em tinta sobre fonoaudiologia, educação, psicologia, ciências médicas e ciências sociais, livros em tinta sobre deficiências sensoriais, periódicos, revistas sobre fonoaudiologia e sobre as deficiências sensoriais, teses e dissertações sobre deficiências sensoriais. Tanto os livros em braille quanto os livros falados são recebidos da Fundação Dorina Nowill, São Paulo, e como nosso acervo de livros falados é pequeno, eles são incentivados a fazerem cadastro na Fundação Dorina Nowill para empréstimos.
O processo de aprendizagem do braille para pessoas que já foram alfabetizadas com letra em tinta começa pela memorização dos pontos, ou seja, memoriza-se o conjunto de pontos relativos a cada letra, sinal ou pontuação. No caso da pessoa cega, não basta memorizar para ler palavra, frase ou texto; é preciso praticar a leitura por causa do tato. Por isso começa-se por ler palavras, depois frases e posteriormente trechos para finalmente chegar ao livro. Além da leitura das palavras é preciso saber caminhar pelo texto, ou seja, ler uma linha e ir para a outra. Quando já se lê livro em braille, podemos dizer que a pessoa tem autonomia para ler tudo que estiver escrito em braille.

CONHECENDO UM POUCO SOBRE O SISTEMA BRAILLE
Cerqueira (2009) aponta que Louis Braille, embora tivesse aprendido a escrever com o auxílio de guia-mãos e fizesse uso disso, não lia seus escritos, portanto não podia conferir, corrigir ou alterá-los. Segundo este autor, em palavras atribuídas a Louis Braille,
O acesso à comunicação em seu sentido mais amplo é o acesso ao conhecimento, e isto é de importância vital para nós, se não quisermos continuar sendo desvalorizados ou protegidos por pessoas videntes bondosas. Não necessitamos de piedade nem de que nos lembrem que somos vulneráveis. Temos que ser tratados como iguais, e a comunicação é o meio pelo qual podemos consegui-lo. (CERQUEIRA, 2009).
A sonografia de Charles Barbier rompeu com a linha e com a curva, tendo sido considerada um marco na história da alfabetização dos cegos, instituindo o ponto como forma de leitura e escrita. Poucos anos depois, Louis Braille, tendo conhecido as duas formas de alfabetização, inventou, a partir dos doze pontos de Charles Barbier, o Sistema Braille, com seis pontos.
O sistema de doze pontos de Charles Barbier, capitão de artilharia do exército francês, foi desenvolvido para a comunicação com os soldados durante a noite. Assim, por meio do tato, eles conseguiam ler as mensagens. Barbier, em 1821, apresentou seu sistema aos alunos do Instituto Real dos Jovens Cegos (localizado em Paris), pois pensou que também poderia facilitar a comunicação entre pessoas cegas. Louis Braille interessou-se pelo sistema e logo percebeu as falhas, propondo melhorias a Barbier, que as reconheceu, mas recusou-se a fazer alterações.
Em 1824, Louis Braille, aos 15 anos de idade, apresentou o sistema de seis pontos com 63 combinações, representadas por letras do alfabeto, letras acentuadas, números, pontuações, sinais e símbolos básicos de aritmética. Em 1837, Braille apresentou a versão final do sistema, que foi adotado em todo o mundo, até hoje. Algumas adaptações foram necessárias em razão da evolução científica e tecnológica.
O Sistema Braille é formado por seis pontos em relevo, dispostos em duas colunas de três pontos, ou seja, três pontos à esquerda e três pontos à direita, chamados de “cela braille” ou “célula braille” (Figura 1). Os pontos são numerados para facilitar sua identificação, sendo: do alto para baixo, coluna da esquerda, pontos 1-2-3; do alto para baixo, coluna da direita, pontos 4-5-6. É possível formar 63 combinações, ou símbolos braille, a partir de diferentes disposições desses seis pontos. Além de ser uma escrita, o braille é um sistema tátil; portanto, o tato é um fator importantíssimo no processo. Para a escrita, é utilizada a reglete 5 e o punção 6 ou a máquina especial de escrever, em que cada tecla corresponde a um ponto. Na reglete 7, a escrita é feita da direita para a esquerda. Há também as prensas braille, que produzem livros utilizando máquinas estereótipas, semelhantes à máquina de escrever. Também há impressoras braille para computadores. De início, a maioria dos cegos lê com a ponta do dedo indicador da mão direita ou esquerda (ROCHA; GONÇALVES, 1987; SÃO PAULO, 2002).

FIGURA 1 - Cela ou célula braille

PROJETO LEITURA: O ANTES E O DEPOIS
A partir de alguns estudos, os quais foram apresentados em maio de 2010 no III SIMTEC – Simpósio de Profissionais da UNICAMP –, começou-se a investir no acervo de livros em braille e a utilizar diversas estratégias para potencializar o interesse pela leitura. Nascia assim, em setembro de 2010, o Projeto Leitura. Os estudos iniciaram com dois aprendizes e, posteriormente, com os demais, que também optaram por aprender o braille.
Em fevereiro de 2008 foram iniciadas atividades de ensino da leitura do braille, com dois adultos que passaram pelo grupo de reabilitação (Geraldo e Fabrício)8 . Em final de 2008 eles iniciaram o processo de escrita. Geraldo sempre gostou de ler, desde criança. Em 2009 foi-se percebendo que sua escrita melhorava. Ele tinha interesse em escrever bem. Geraldo retirava livros do acervo para levar para casa. Fabrício já não gostava de ler; dizia que fugia das leituras quando criança e, quando adulto, não foi diferente.
No começo Fabrício só escrevia textos ditados. Em agosto de 2009 tentou-se verificar o que ele de fato poderia escrever e sugeriu-se (atividade para casa) que ele escrevesse um texto a partir da frase: “Era uma linda tarde de primavera quando…”. O texto escrito foi uma surpresa. Em março de 2011 foi dado um assunto para que ele desenvolvesse: “Oque você acha importante para a pessoa com deficiência visual e o que falta”. Ele também desenvolveu um bom conteúdo. Não fez muitas leituras táteis, mas melhorou o conteúdo e a habilidade de escrever.
Em 2011, foi apresentada uma comunicação oral no VII Seminário Nacional de Bibliotecas Braille (SENABRAILLE) com o título “A leitura tátil como mediadora para o aprendizado da escrita braille” (MENDES, 2011), na qual se demonstrou que houve melhora na escrita de dois sujeitos atendidos juntos desde fevereiro de 2008. Ambos melhoraram a escrita, e o crescimento do sujeito que lia constantemente foi significativo.
No decorrer dos atendimentos, os sujeitos foram incentivados a escrever. Pode-se dizer que houve cumplicidade entre o professor e os aprendizes, e isso só foi possível em razão do interesse genuíno pela leitura demonstrado pelos aprendizes e a partir das leituras oferecidas a eles durante o atendimento. Paralelamente a isso, desenvolveu-se a preocupação com a escrita correta, resultando em sua melhoria.
Primeiramente, buscaram-se conhecer quais eram suas expectativas quanto ao Sistema Braille e, depois, quais eram suas percepções sobre este código. Esses estudos foram apresentados, em 2008, no II SIMTEC, em trabalho intitulado “Expectativa(s) de pessoas com deficiência visual sobre o Sistema Braille” (MENDES, 2008), e em 2009, no VI Seminário Nacional de Bibliotecas Braille (SENABRAILLE), em trabalho intitulado “Percepções de adultos com deficiência visual sobre o Sistema Braille” (MENDES, 2009).
Em 2010 foi apresentado no III SIMTEC o trabalho intitulado “Sistema Braille: a leitura e escrita para adultos com deficiência visual” (MENDES, 2010), demonstrando que, no decorrer das atividades, notou-se avanço na leitura e escrita e crescente interesse pela leitura, bem como uma melhoria na autoestima e autonomia. Tão importante quanto o aprendizado do Sistema Braille é ter um acervo de livros em braille com variedade de títulos. Assim, ressaltou-se a importância da produção, do acervo e da acessibilidade a livros em braille. A partir desses estudos começou-se a investir no acervo de livros em braille e a utilizar diversas estratégias para potencializar o interesse pela leitura.
No IV SIMTEC, em 2012, foi apresentado um trabalho no formato de pôster, intitulado “A importância do acervo de livros em braile para o leitor cego” (MENDES, 2012), no qual demonstrou-se o crescente aumento de empréstimos de livros em braille. Este estudo abrangeu os anos de 2008 a 2012 e levou à conclusão de que tão importante quanto o acervo de livros em braille é a variedade de títulos, para que a pessoa cega possa escolher o que deseja ler.
Para Silva (1988), não podemos permitir que nos ditem o que ler, como ler e que valor atribuir à leitura. Daí a importância do acervo do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação (CEPRE) para pessoas com deficiência visual atendidas pelo setor da Pedagogia Especializada.
Em 2014, apresentou-se o trabalho intitulado “A pessoa com cegueira adquirida e o braille” no V SIMTEC (MENDES, 2014a), no qual demonstraram-se alguns dados da dissertação de mestrado defendida pela autora em agosto desse ano. Em 2015, o trabalho “Braille: o desvendar da leitura e da escrita” foi apresentado para concorrer ao Prêmio Profissionais de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (PAEPE) de melhor trabalho da universidade, parte do qual está relatado aqui. A autora não ganhou o prêmio, mas teve a oportunidade de concorrer e mostrar seu trabalho 9.

RESULTADOS
Houve um crescimento no número de retiradas (empréstimos) de livros em braille no acervo do CEPRE (Gráfico 1).

Gráfico 1
Livros em braille emprestados do acervo do CEPRE (por ano)
20081
20094
20108
201114
201212
201310
201424
201527
Fonte: Elaborado pela autora

Notou-se melhoria na escrita dos aprendizes, o crescimento foi tanto na coerência e extensão dos textos quanto na ortografia. As estratégias de leitura utilizadas foram devidamente aplicadas e tiveram êxito.

DISCUSSÃO
Aprender a ler e escrever em braille trouxe mudanças positivas à vida das pessoas com deficiência visual. Para aquelas que gostam de ler, voltou o prazer de ter um livro nas mãos. Para aquelas que não gostam de ler, a leitura feita durante o processo de aprendizagem foi crucial. Outras tomaram gosto pela leitura. A todas, no entanto, a aprendizagem do braille devolveu-lhes a autonomia e independência.
Com o incentivo à leitura, a escrita passa a ser considerada, pois para escrever é preciso ler, ou seja, é a leitura que dará o repertório necessário para a escrita. Na aprendizagem do braille, antes de se enveredar pela escrita é preciso praticar a leitura, afinal, embora após ter memorizado os pontos já seja possível aprender a escrever, sema prática da leitura não é possível ler o que se escreve.
Os aprendizes levavam material para estudar em casa toda semana e, quando retornavam, eram sempre indagados se haviam lido e praticado. Suas respostas sempre foram verdadeiras. O material que levavam para casa dependia do momento em que se encontravam no aprendizado. O material podia envolver lista de palavras, lista de frases, trechos de frases até chegar a uma página inteira, livro. Também, conforme seus pedidos, levavam materiais como: lista do alfabeto, lista com sinais de pontuações, lista com letras acentuadas etc.
Os que estavam em uma leitura mais avançada pesquisavam na internet e levavam o material impresso em braille. Geraldo, por exemplo, é pregador em uma igreja evangélica e pesquisava na internet assuntos relativos à religião, que levava para estudar em casa. Fabíola 10, que estava cursando espanhol, pesquisava na internet textos nesse idioma e levava para casa para estudar.
Todos eram informados de que no livro haveria alguns sinais que ainda não tinham sido trabalhados. Caso tivessem alguma dúvida, deveriam marcar a página onde estava o sinal, a palavra ou a dúvida que tivessem, pois isto seria trabalhado no retorno. Geraldo, por exemplo, levou o livro para ler nas férias e o leu em 16 dias. Disse que no primeiro dia, ao ler a primeira página, teve um pouco de dificuldade, e levou uns 40 minutos para ler um trecho. Pensou que não conseguiria. Aí resolveu parar e fazer outra coisa e tentar novamente mais tarde. Conseguiu ler sete páginas. Após este período inicial, foram trabalhados os sinais de asterisco, abertura e fechamento de aspas, travessão, abertura e fechamento de parênteses e hífen; Geraldo identificou os pontos e trouxe no retorno. Levou outro livro para casa e o leu em uma semana; levou o terceiro livro para casa. Daí em diante, Geraldo não parou mais de ler.
O esquema de levar o livro para casa sem que todos os sinais tivessem sido trabalhados foi uma estratégia de leitura. Algum tempo depois, Geraldo, ao ser indagado sobre o que tinha achado de ler o primeiro livro sem conhecer todos os sinais, respondeu que o classificou como bom. Não considerou isso um problema para o leitor; muito pelo contrário, ajudou na atenção durante a leitura.
Mendes (2014b) aponta que o processo de enfrentamento e aceitação com relação à perda visual é peculiar. Alguns passam anos nesse processo e é preciso considerá-lo e respeitá-lo. Pode-se constatar pelos relatos que alguns deles, embora quisessem aprender o braille, ainda não aceitavam o fato de terem ficado cegos. Isso pode interferir nas atividades de reabilitação, no caso, o aprendizado do braille, tornando o processo mais lento. A autora conclui que a superação das dificuldades para dominar o Sistema Braille requer grande dedicação e esforço. É por isso que a pessoa precisa superar a perda da visão, aceitar a nova situação e, então, encontrar um novo caminho. Não é fácil, mas é possível e gratificante.
Quando a cegueira acontece na fase da adolescência ou, principalmente, na fase adulta, a inserção social fica comprometida. Geralmente estes indivíduos isolam-se ou não se sentem bem em sair e relacionar-se com os outros; às vezes, os outros não sabem lidar com a deficiência e se afastam. Quando participam da reabilitação, começam a sair, a relacionar-se, a lutar pelo direito à educação, lazer e cultura. O aprendizado da leitura e escrita braille, para muitos dos aprendizes, foi um desafio, pois achavam que era difícil e que não conseguiriam aprender, mas, conforme o aprendizado acontece, conscientizam-se de que é possível, e aprender algo que se julgou impossível é gratificante. Embora os entrevistados passem, ou tenham passado, por dificuldades durante o processo de aprendizagem da leitura e escrita braille, seus depoimentos comprovam os benefícios pessoais e sociais (MENDES, 2014b).

CONCLUSÃO
Conclui-se que durante o processo de aprendizagem do braille houve uma melhora na qualidade de vida dos adolescentes e adultos que perderam a visão. Percebeu-se uma transformação pessoal e da sociedade. Saber ler e escrever é ter autonomia e independência e poder exercer a cidadania.
Notou-se que a maioria dos aprendizes não se predispôs a ler, sendo necessário usar estratégias para a leitura de livros. Em contrapartida, para alguns, a escrita tornou-se uma virtude: o hábito de ler.
É fato que hoje cresceu o número de informações na escrita braille, como em embalagens de medicamentos, produtos alimentícios e de beleza, catálogos, contas de água e de luz, programas de eventos, cardápios, elevadores, bancos etc. É fato também que há um alto custo na impressão da escrita braille, assim como é fato que é necessário um grande espaço para guardar esses livros, pois seu volume é maior; mas a escassez de livros em braille é algo que merece ser destacado, pois é ressaltado pelos leitores.
No caso da escassez do livro em braille, podemos afirmar que ela ocorre em virtude do baixo número de leitores; mas também há poucos leitores porque há escassez de livros em braille. É importante criar políticas públicas para a produção de livros e materiais em braille.

REFERÊNCIAS
  • CAIADO, Katia Regina Moreno. Aluno deficiente visual na escola: lembranças e depoimentos. Campinas: Autores Associados/PUC, 2003.
  • CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental, 1. São Paulo: Ática, 1998.
  • CERQUEIRA, Jonir Bechara. O legado de Louis Braille. Revista Benjamin Constant, Rio de Janeiro, Edição especial 02, out. 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.
  • CHARMEUX, Eveline. Aprender a ler: vencendo o fracasso. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2000.
  • CIEGLINSKI, Amanda. Pesquisa mostra que 45 % dos brasileiros não têm hábito de ler. Agência Brasil. 25 mai. 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.
  • DAIN - DEPARTAMENTO DE APOIO À INCLUSÃO. O Sistema Braille. 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.
  • FOSTER, Gustavo. Porque os brasileiros leem tão pouco. ZH. 7 abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.
  • IPL - Instituto Pró-Livro. Retratos da leitura no Brasil. São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2008.
  • KLEIMAN, Angela. Preciso “ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? Campinas: Cefiel/IEL/UNICAMP, 2005.
  • MENDES, Fátima Aparecida Gonçalves. Expectativas de pessoas com deficiência visual sobre o Sistema Braille. In: SIMPÓSIO DE PROFISSIONAIS DA UNICAMP, 2., 2008, Campinas. Resumos eletrônicos… Campinas: UNICAMP, 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.
  • MENDES, Fátima Aparecida Gonçalves. Percepções de adultos com deficiência visual sobre o Sistema Braille. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE BIBLIOTECAS BRAILLE, 6.. 2009, João Pessoa. Anais… João Pessoa: SENABRAILLE, 2009.
  • MENDES, Fátima Aparecida Gonçalves. Sistema Braille: a leitura e escrita para adultos com deficiência visual. In: SIMPÓSIO DOS PROFISSIONAIS DA UNICAMP (III SIMTEC),3., 2010, Campinas/SP. Resumos eletrônicos… Campinas: Simpósio dos Profissionais da UNICAMP, 2010.
  • MENDES, Fátima Aparecida Gonçalves. A leitura tátil como mediadora para o aprendizado da escrita braille. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE BIBLIOTECAS BRAILLE, 7., 2011, Campinas. Anais eletrônicos… Campinas: UNICAMP, 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.
  • MENDES, Fátima Aparecida Gonçalves. A importância do acervo de livros em braille para o leitor cego. In: SIMPÓSIO DE PROFISSIONAIS DA UNICAMP, 4., 2012, Campinas. Anais… Campinas: UNICAMP, 2012.
  • MENDES, Fátima Aparecida Gonçalves. A pessoa com cegueira adquirida e o braille. In: SIMPÓSIO DE PROFISSIONAIS DA UNICAMP, 5.; 2014, Campinas. Resumos eletrônicos… Campinas: UNICAMP, 2014a.
  • MENDES, Fátima Aparecida Gonçalves. A constituição do sujeito com cegueira adquirida e a aprendizagem da leitura e da escrita braille. 2014b. 144f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, São Paulo.
  • ROCHA, Hilton; GONÇALVES, Elizabete Ribeiro. (Org.). Ensaio sobre a problemática da cegueira: prevenção, recuperação, reabilitação. Belo Horizonte: Fundação Hilton Rocha, 1987. p. 21-48.
  • SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Educação. Grafia braille para a língua portuguesa. Brasília: MEC/SEESP, 2002.
  • SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
  • SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos de pedagogia da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

NOTAS
1. Os resultados parciais da pesquisa foram apresentados nos seguintes eventos: II ao V Simtec (Simpósio de Profissionais da UNICAMP), em 2008 a 2014 e VI e VII Senabraille (Seminário Nacional de Bibliotecas Braille),em 2009 e 2011.
2. Profissional da Área de Assistência do CEPRE - Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: fmendes@fcm.unicamp.br – ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8773-1620
3. Pessoas que enxergam.
4. O Sistema Braille tem 63 combinações para a formação das letras, mas alguns estudiosos consideram a representação do espaço vazio entre as palavras; assim, são 64 combinações.
5. Instrumento de escrita manual para pessoas com deficiência visual.
6. Instrumento utilizado para escrever na reglete.
7. Em 2013 foi lançada no mercado uma nova versão do instrumento de escrita manual (reglete) para pessoas com deficiência visual, desenvolvida por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista de Araraquara (Unesp). A escrita é feita da esquerda para a direita.
8. Nomes fictícios.
9. Nota: Vale lembrar que todos esses trabalhos fomentados nos eventos mencionados anteriormente marcam a trajetória profissional da autora desse manuscrito em relação a sua especialização na temática apresentada. A autora atua na área da deficiência visual, no Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel de O. S. Porto” (CEPRE/FCM/UNICAMP), há 12 anos, nas atividades de ensino do Sistema Braille e em recursos de informática para pessoas cegas ou com baixa visão.
10. Nome fictício

ϟ

in Revista Saberes Universitários Campinas, SP v.2 n.1 p.57-69 - mar.2017
ISSN -2447-9411

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