O Departamento de Cegos e Amblíopes disponibiliza livros braille, áudio e digitais aos 160 mil deficientes visuais de Portugal. Mas continua a sair caro a um cego ser letrado.
“As pessoas cegas”, diz Carlos Ferreira enquanto dedilha uma linha de braille para encontrar a aplicação da Batalha Naval no seu iPhone, “são como as outras, às vezes só querem parar de trabalhar e distrair-se. Mas ainda não percebi bem porquê, têm muito poucos jogos...”
Não é o caso do director do Departamento de Cegos e Amblíopes da Biblioteca Nacional, que tem dezenas de jogos no telemóvel, do xadrez às damas, passando pela forca. Sentado à secretária do seu escritório, Carlos explora as dezenas de aplicações com destreza e pára na batalha naval – “Sou fã” – para uma demonstração. O iPhone grita códigos de guerra enquanto se ouvem Splashs. São os tiros do director a acertar na água. “É melhor parar, que isto não está a correr muito bem... [risos] Vou mostrar-lhe outras aplicações.”
Segue-se o Color Reader: Carlos encosta o iPhone à camisola da jornalista e o telemóvel diz ‘Cor Pre-to’, numa voz feminina robotizada. Muda de programa outra vez, apalpa a mesa, aponta a câmara do iPhone a um objecto e fotografa-o. “Vamos falando que o resultado ainda demora.”
Carlos tem 50 anos, é cego de nascença e assumiu a direcção deste departamento “a 12 de Dezembro de 2011”. Licenciado em Organização e Gestão de Empresas, trabalhou muitos anos no Ministério da Educação antes de se mudar para a Biblioteca Nacional, onde hoje lidera uma equipa de cinco funcionários, todos eles cegos ou amblíopes, que gerem um acervo de mais de 10 mil livros em vários suportes para os leitores inscritos na instituição (eram 639 em Setembro).
“A forma que as pessoas cegas têm de ler difere essencialmente na forma como se acede à informação”, explica-nos, enquanto as mãos passeiam num documento sobre o centenário do nascimento de Helen Keller, enquanto Louis Braille nos observa congelado num retrato a preto-e-branco pendurado na parede atrás de Carlos. “Quando vocês olham para uma página impressa têm uma visão global do que lá está. Nós fazemos sempre uma leitura linear através do braille, que dá resposta a quase todas as nossas necessidades.”
Enquanto o ouvimos somos interrompidos pelo iPhone com o resultado da demanda de há cinco minutos. “So-ny Mu-sic Re-cor-der”, soletra o telemóvel. “Ah! Ouviu?”, diz Carlos, triunfante. “É o seu gravador, não é?”
TECNOLOGIAAs aplicações e o próprio sistema Apple – segundo o especialista Carlos, “a única marca que já percebeu, também por pressão dos utilizadores cegos, que existe este mercado por desenvolver” – são um sinal dos tempos. Para cegos, como para quem vê.
Foi com o desenvolvimento tecnológico em mente que partimos para a entrevista. O aparecimento de audiolivros e de telemóveis que falam com os utilizadores levanta uma questão inocente mas legítima, que levamos na ponta da língua ao subir ao primeiro andar da BN: está o braille condenado a desaparecer?
“Tenho alguma dificuldade em dizer que sim ou que não”, responderá Carlos com um suspiro. “No meu tempo de escola não havia nada que substituísse o braille, mas com o advento das tecnologias de informação isso deixou de ser assim. Discutir isto é um bocado como discutir se os livros em papel vão desaparecer...”
No ano em que nascia o Departamento que hoje dirige, Carlos estava a entrar para a 1.ª classe. Ao contrário do que acontece hoje, em que as crianças com deficiências visuais são integradas desde o início da escolaridade obrigatória em escolas regulares, Carlos esteve numa escola para cegos até ao antigo 7.º ano.
“Hoje os níveis de literacia estão a reduzir, os miúdos não lêem, preferem ver televisão ou estar na internet, e os miúdos cegos vão nessa onda também. Com a situação agravada de que o próprio ensino não está qualificado para dar apoio a alunos cegos, com honrosas excepções.”
O que se passa com uns é o que se passa com outros, só que no caso dos miúdos cegos, “se começam a desprezar o braille, depois dificilmente lá chegam”. Por outro lado, “há também uma culpa grande de alguns adultos cegos”, que estimulam este “facilitismo” tecnológico, acusa Carlos. “A ideia que se transmite aos mais novos é que só com suportes de voz conseguem ir lá. E não é assim. Nós adultos já adquirimos conhecimentos, mas eles não e é preciso ler muito durante a vida. Não conheço ninguém que escreva bem sem ter lido muito e o braille é o sistema que temos para ler.”
Na realidade, começamos a perceber – já a conversa vai em mais de uma hora – que a tecnologia tem mais para potenciar o braille do que para o eliminar. Quando Carlos entrou para o secundário, passando do ensino especial para o regular, a direcção do Liceu Pedro Nunes teve de lhe arranjar uma sala para poder guardar os livros: só o manual de matemática em braille tinha 12 volumes A4.
Hoje, a par dos audiolivros, uma linha de braille ajuda qualquer cego a aceder a uma série de informações, seja via computador seja via telemóvel (com ligação bluetooth). “Você agarra nisto”, diz Carlos passando-nos o seu pequeno paralelepípedo de 12 caracteres, “e não pesa nada. O meu cartão tem 2GB, meto aqui cerca de 2 milhões de páginas braille. Não tenho aqui dois milhões, mas tenho uma boa quantidade de livros e se associar este meu equipamento ao iPhone a capacidade aumenta ainda mais”, diz a sorrir. “A tecnologia tem um potencial enorme para promover o braille.”
RetratoSe o Censo de 2001 mostrava a existência de cerca de 163 mil pessoas com deficiência visual em Portugal, dos quais 25 mil eram cegas, “o de 2011 não tinha questões que permitissem determinar a evolução ou regressão desses números”, como explica ao i a vice-presidente da ACAPO.
Os estudos mais recentes, na sua maioria norte-americanos, estimam que 1% da população de cada país sofre de algum tipo de deficiência visual. E do total de cegos portugueses, diz Graça Gerardo, “julga-se que aproximadamente 10% a 15% lêem braille”. Já no universo de mais de 3 mil associados da ACAPO, são cerca de 1800 os que lêem, o que “também não significa que esse número represente o total de portugueses que conseguem ter um claro domínio deste sistema de leitura e escrita, que é o principal garante da autonomia e desenvolvimento cultural e social de uma pessoa com deficiência visual”.
Ainda assim, o braille continua a ser um sistema a que é dada pouca atenção por cá. Entre outras razões, pelos custos que envolve. Hoje produzir um livro em braille sai caro, “mas sai muito mais barato do que saía há 30 anos, porque na altura eram escritos em máquina braille ou à mão”, diz Carlos. Mesmo assim, os custos financeiros e humanos são altos.
Uma caixa de papel braille com mil folhas custa cerca de 25 euros. E uma impressora como as que existem no departamento, que produz 600 páginas por hora, custa à volta de 15 mil euros. A isto juntem-se os preços das linhas de braille: a que Carlos traz sempre no bolso custa 1800 euros, mas uma mais avançada, de 40 caracteres, pode rondar os 4 mil euros.
“Como dizia um amigo meu, o iPhone é caro mas só custa 600 euros. E aqui está a diferença”, diz Carlos, antes de largar outro número de cabeça: “O que dizia o último estudo que li sobre esta matéria é que só 10% dos cegos americanos lêem bem braille e desses 95% têm um emprego considerado bom comparativamente com outras pessoas.”
Sobre o caminho a trilhar para melhorar o acesso a deficientes visuais, Carlos é cauteloso e é o primeiro a dizer que é preciso ter cuidado com as reivindicações, para não se “ser vítima dos próprios desejos”. Mesmo assim, e apesar de “ser um assunto delicado”, acha que “não existe outro rumo” que não seja o Ministério da Educação e editoras unirem esforços para melhorar o acesso de deficientes visuais à literatura.
No caso do ministério, onde Carlos trabalhou, as editoras de manuais escolares já os enviam em formato digital à equipa que prepara versões em braille e áudio. No caso das editoras comuns, o processo tem sido mais moroso, também por causa dos direitos de autor.
Desde 2003 tem havido contactos esporádicos da BN e do Centro Professor Albuquerque e Castro, “o grande produtor de material não didáctico braille em Portugal”, com as editoras para facilitar o processo, que para já continua por avançar.
Em contrapartida, e graças às tecnologias, já há sistemas de ajuda à navegação dos cegos na sociedade, que vão para lá dos livros. A ACAPO está agora “em fase de negociações com a equipa ministerial [de Educação] para limar arestas” no “trabalho meritório” do ministério, que já criou as escolas de referência, “dotadas de recursos materiais e humanos para dar autonomia a alunos com deficiência visual”.
Graças à Lei 33/2008, que entrou em vigor em 2009, os deficientes visuais já podem pedir que informações como o nome de produto e respectiva data de validade sejam apostas no final das suas compras, o que, diz Graça Gerardo, “já acontece em muitas das grandes superfícies e em todas as compras online”.
Literatura gratuitaNum comunicado da ACAPO divulgado no Dia Mundial do Livro, a associação referia que continua a ser difícil os cegos “lerem em pé de igualdade”. Neste caso em mão, ou não fosse o braille incontornável. Até se desenvolverem alternativas, o departamento da BN é um dos poucos que ajudam os cegos portugueses a acederem à literatura.
O departamento nasceu em 1969, quando a biblioteca se mudou para o edifício que hoje ocupa, no Campo Grande. Na altura, o director Manuel Santos Estevens tinha acabado de voltar de uma viagem a Washington, onde visitou a Biblioteca do Congresso, “que já tinha um serviço para cegos”, explica Carlos. O que Estevens fez foi transportar a ideia para Lisboa, pondo em prática o serviço de apoio a leitores cegos, que opera cada vez melhor.
Quatro anos depois da sua fundação, o serviço começou a receber os primeiros voluntários, pessoas sem deficiência que ajudam a reproduzir os livros impressos em vários suportes. Neste momento, há 28 voluntários no departamento, “essencialmente a trabalhar no registo sonoro de livros, mas também a rever e a corrigir livros digitalizados para que depois possam ser impressos em braille ou lidos por eles”. Carlos apelida-os carinhosamente “leitores”, a “jóia da coroa” do departamento.
Marta Azenha, figurinista de 25 anos, é um deles. Quando saímos do escritório para conhecer as instalações do departamento, Marta instala-se no estúdio de leitura, abre “O Décimo Quarto Zero”, de Enzo Russo, aproxima a boca do microfone e começa por dizer o número da página. É uma das muitas diferenças entre os audiolivros para cegos e os regulares, que editoras como a LeYa já disponibilizam para o leitor comum. “Quando a Marta está a ler”, explica-nos Carlos, “uma das preocupações que tem de ter, para além de ler o texto, é indicar o número da página. Outra, no caso de ter imagens, é descrevê-las, e quando há palavras em língua estrangeira soletrá-las, para que o livro não fique pela metade”.
Do outro lado do vidro, um dos funcionários do departamento vai assistindo à leitura, “não porque queira conhecer logo o livro”, brinca Carlos, “mas para assegurar o registo em formato digital, identificar eventuais falhas e introduzir marcas para depois editar o som e tentar que o produto final fique o melhor possível”.
É esse produto final que é disponibilizado aos mais de 600 leitores inscritos. Os livros em braille – neste momento mais de 3400, além de 4 mil obras musicais – só podem ser emprestados. “Enviamos pelo correio numas pastas com um cartão que tem a morada do leitor de um lado e, no verso, a nossa morada aqui”, para facilitar a devolução.
Os audiolivros que Marta e os outros voluntários gravam (mais de 2100) e os livros digitais (938) são oferecidos. Estes últimos são enviados por email, depois de o leitor consultar o catálogo actualizado anualmente e fazer o pedido. Para os outros, o departamento está a tentar pôr em prática um sistema de autenticação no site da BN para que os leitores possam ter acesso a eles sem sair de casa. Até o processo estar concluído, o departamento usa a Drop Box como “solução intermédia”, onde através da internet os leitores descarregam os livros no conforto das suas casas.
Sem comentários:
Enviar um comentário