Uma ética inclusiva
Theodor Adorno, filósofo e sociólogo alemão (1903-1969), escreveu em 1965 um texto inquietante e seminal intitulado A Educação após Auschwitz. Na sua essência o texto interroga-se sobre quais são as melhores estratégias educativas que permitam que o horror e a barbárie de Auschwitz nunca mais se repitam. O ponto da pergunta e de partida é o que correu mal para que as pessoas se tivessem tornado tão dependentes e manipuláveis, para que tivessem fechado os olhos ao extermínio. O que se teria passado na educação para que ela se tivesse visto incapaz de suster a barbárie. Adorno interroga-se se uma educação violenta não forma pessoas violentas, qual o processo que levou as pessoas a tornarem-se indiferentes ao sofrimento alheio, como é que as pessoas foram mais educadas para amar a ordem e o material do que para respeitar as outras pessoas. E pergunta, sabendo isto, como devemos educar depois de conhecer o que se passou em Auschwitz?
Theodor Adorno, se estivesse ainda vivo, teria feito esta semana uma pergunta semelhante. Chegou-nos a notícia que na Líbia são vendidos homens como escravos pela quantia de 400 dólares. Pasmamos e incrédulos perante esta barbárie, formulamos penosamente a pergunta que Adorno fez há mais de 40 anos: “Como educar depois da Líbia?”
Num tempo de globalização, pouco adianta dizer que a Líbia é a Líbia e Portugal é Portugal. De tempos a tempos somos informados de procedimentos semelhantes em que pessoas são, aqui ou noutros países europeus, na prática escravizadas e maltratadas para produzirem lucro para os seus algozes. A Líbia é só mais um caso que, tendo sido mediatizado por uma influente cadeia de notícias dos Estados Unidos, assumiu maior difusão e visibilidade.
Mas a pergunta permanece, ainda que, talvez, transmutada: o que pode e deve fazer a educação para que as desgraçadas situações de desprezo pelos Direitos Humanos de ontem e de hoje não se repitam?
A resposta parece mais fácil no âmbito dos princípios do que no âmbito da sua execução concreta. No âmbito dos princípios, as escolas, cada escola, deve converter-se numa agência de Direitos Humanos. Uma agência de Direitos Humanos conhece, aplica e difunde os direitos que na nossa cultura ocidental consideramos o património inalienável de qualquer ser humano. Pensar os Direitos Humanos à escala da escola pressupõe uma leitura contextualizada, situada, sobre qual o impacto que cada um dos Direitos Humanos tem no modo de funcionamento e no modelo de relacionamento da escola.
As questões que Adorno levantou continuam a inquietar-nos: como não educar com base no medo e no sofrimento? Como criar uma ética que identifique e recuse uma obediência cega? Como ser sensível e solidário ao sofrimento alheio? Como moderar o inflacionado valor dos bens materiais? Estas respostas não podem ser dadas numa hora curricular, numa disciplina, por um professor: têm de ser uma filosofia assumida e tenazmente assumida por toda a escola. No ano passado orientei um curso numa escola da periferia de Lisboa e, durante uma das sessões de formação, uma professora, ilustrando os problemas com que a escola se confrontava, disse: “Sabe? Um dos principais problemas desta escola é o racismo.” Fiquei chocado não só pelo que me foi dito, mas pelo ar conformado com que foi dito e com o encolher de ombros “compreensivo” de muitos colegas. Há comportamentos racistas na escola? E o que se faz? “Tolera-se”? Compreende-se? Como compreender e tolerar comportamentos intoleráveis e incompreensíveis? A função de promover e de educar para os Direitos Humanos é pois de toda a escola, explicando, vivenciando, informando e vigiando o seu exercício.
Atribuir a toda a escola, a todos os professores e adultos da escola, esta responsabilidade está longe de ser suficiente. É essencial agregar, coaptar as famílias para este esforço, torná-las parceiras neste combate intransigente pelos direitos de todos. Alguém dirá: “Mas as famílias são muitas vezes o pior problema!” E diríamos nós: “Por isso mesmo. É por aí que a escola, com todos os recursos que tem, deve intervir.” E falta ainda uma poderosa alavanca desta luta: os alunos. Os alunos que tão poucas vezes são ouvidos “com ouvidos de ouvir” sobre o que pensam da escola, como a poderiam melhorar, como sonham que a escola poderia ser. Os alunos são destinatários e ao mesmo tempo agentes de uma ética dos Direitos Humanos na escola. Uma ética que tem de ser inclusiva, valorizando a fala de cada um, respeitando e fazendo confiança na maturidade de cada aluno. Alguns dirão: “Mas eles não têm maturidade!” Pergunta-se: “Porque não têm? E como a podemos incentivar?”
Toda esta nova compreensão do fenómeno educativo se situa numa nova ética a que chamaríamos uma ética inclusiva. Sabemos que os valores éticos — isto é, os valores que nos são mais essenciais, mesmo aqueles que vão para além da conformidade com regras ou normas — têm uma grande relevância na criação de ambientes inclusivos. Precisamos sem dúvida de desafiar valores éticos que são incompatíveis com a Educação Inclusiva (EI). Por vezes cria-se a ideia que é possível desenvolver a EI mantendo intocáveis, ou minimamente afetados, os valores mais tradicionais da escola. É um engano. Este tipo de conceção pode conduzir-nos a uma escola regular que acolhe à parte estruturas e alunos especiais, mas não nos pode conduzir a uma efetiva EI. Precisamente porque há valores éticos na inclusão que não podem ser compaginados com valores opostos da escola tradicional.
Ou temos a convicção que os valores humanos são universais e que a educação é para todos; ou temos a ideia que, apesar de isso estar consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, é só uma teoria sem aplicabilidade face à dura realidade.
Ou temos a convicção que os alunos são diversos e que devem ser tratados como tal, ou achamos que a diversidade é para pôr entre parêntesis quando a homogeneidade consegue convencer que é mais eficaz.
Ou temos a convicção que a participação é um valor fundamental, de cidadania para todos os atores na escola, ou temos a ideia que a participação é muito complicada e só atrasa a aprendizagem.
Ou temos a convicção que a aprendizagem tradicional não é resposta para a acrescida diversidade dos alunos de hoje, ou temos a ideia que o que é preciso é que os alunos que querem aprender não sejam estorvados pelos que não querem aprender.
A promoção dos Direitos Humanos está intimamente ligada a uma postura de respeito pelo percurso de todos os alunos e, sobretudo, pela convicção que todos os alunos importam e importam igualmente. Por isso é tão importante ligar os Direitos Humanos à ética da inclusão: na verdade, a melhor maneira de defender na escola a “densificação” dos Direitos Humanos é promover oportunidades de todos participarem nos processos de educação e de aprendizagem. Sem deixar ninguém para trás.
Como podemos educar depois de sabermos que em novembro de 2017 homens são vendidos como cabeças de gado? Certamente intervindo, conversando, convencendo, ouvindo, observando, para que esta ética de intolerância às violações dos Direitos Humanos se enquiste em cada pessoa que faz parte da comunidade educativa. E assim continuaremos a responder à questão que nos colocou Adorno.
Agora que o Dia Internacional dos Direitos Humanos se aproxima (dia 10 de dezembro) é dia de luto (pelo que nos faltou fazer) e de luta (para o que temos que fazer).
David Rodrigues
Presidente da Pró-Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial; Conselheiro Nacional de Educação
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