"Devem-lhe estar a fazer alguma surpresa", diz um homem ao meu lado como se me falasse directamente ao ouvido. Calculei, pelo tom de voz, que teria cerca de 30 anos, mas não sei, não lhe vi a cara. Imaginei que fosse alto e ligeiramente careca. Quando não se vê, o cérebro bombardeia-nos com imagens instantâneas para colorir uma realidade negra e todos os sons parecem mais próximos do que são. Esse homem não falava comigo, comentava com alguém a venda que eu tinha nos olhos e seguiu a sua vida. Sei que atravessou a passadeira sem problemas - mas eu não. Tropecei num degrau com pouco mais de um centímetro e assustei-me com o barulho dos carros que passavam rente aos pés. Pensei que em vez de sandálias teria sido melhor ter calçado um par de ténis antes de sair de casa.
O sol do Rossio, em Lisboa, ficou vendado há uns minutos e os outros sentidos começam a despertar do entorpecimento habitual. Percebi que tenho um péssimo olfacto. Nunca precisei dele para identificar os estabelecimentos que àquela hora da manhã começam a retomar a actividade dos dias anteriores. "Consegue identificar que loja é esta pelo cheiro?", pergunta entusiasmado Peter Colwell, 52 anos, técnico de Acessibilidades da ACAPO - que ainda deve ter os dedos da minha mão marcados no braço, com tanta força o agarrava para atravessar as ruas. "É uma livraria. Cheira a livros velhos", arrisco. Não era. Era uma sapataria. "E aqui?", pergunta novamente, com menos esperanças. "Cheira a flores..." Também não era uma florista; era uma farmácia. O barulho de garrafas a tilintar dentro de grades e a serem transportadas para dentro de uma qualquer porta é inconfundível. Estou perto de um café, pensei. Desta vez correu bem.
Estamos na Semana Europeia da Mobilidade e Peter, que conhece mais Portugal e os portugueses do que a Inglaterra (está cá há 30 anos), não poupa críticas no ainda cerrado sotaque britânico. "Há atrocidades arquitectónicas por toda a cidade. Isto não devia acontecer no centro histórico de Lisboa", reclama. "Por exemplo, aqui não há diferenciação de piso, contudo, temos duas passadeiras e um passeio. Se para nós, que vemos, se torna complicado distinguir por onde devemos andar, imagine para um cego. Parece tudo a mesma coisa."
Os sinais sonoros que ouvimos quando está verde para os peões também estão longe de servir. São ineficazes e poucos. De olhos vendados começo a atravessar a rua a ouvir o som, quando chego ao outro lado já não ouço coisa alguma. "Pedimos para aumentar o som, mas a Câmara de Lisboa veio com a desculpa de que não podia fazê-lo porque os residentes queixavam-se do barulho. E eu pergunto-me: ''Que residentes? Não mora ninguém no Rossio''." Uma passadeira que dá acesso à Rua Augusta, na Baixa lisboeta - uma das mais movimentadas da cidade - precisa deste sistema. Como se faz então?, pergunto. "Tenta-se perceber quando os carros estão parados, ou simplesmente fica-se à espera de ajuda", desabafa, acrescentando que mais de duas mil pessoas são atropeladas anualmente em passagens sinalizadas.
Mariana Rocha, vice-presidente da instituição, vive no Porto e como tantos outros não vê. "Quando em 1997 saiu a primeira legislação [em que foram instituídos os sinais sonoros e a diferenciação de piso] houve uma grande evolução. Mas estamos a desacelerar. O mais importante continuam a ser os problemas mais simples. É necessário tapar buracos, remover os obstáculos cívicos, como postes no meio dos passeios", diz, acrescentando que coisas simples como horários dos transportes públicos ainda não existem em braile.
Tiro a venda e o Rossio volta a ter luz. Ganhei um novo sentido: o da consciencialização.
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